sábado, agosto 08, 2015

Godard em 3D e 2D

Rever Adeus à Linguagem em DVD é mais uma etapa fascinante na relação com a dimensão experimental do cinema de Jean-Luc Godard — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Agosto), com o título 'Histórias com um cão chamado Roxy'.

Quantos filmes do nosso presente, aqui e agora, serão incensados daqui a dez anos? Ou daqui a vinte anos? No século XXII? Escusado será dizer que ninguém possui qualquer chave mágica capaz de responder a tais questões, do mesmo modo que seria pueril celebrar (ou denegrir) um filme em função de especulações sobre o seu futuro.
Em todo o caso, podemos colocar a questão de outro modo: como é que os filmes que acabam por encontrar um lugar canónico na história do cinema foram recebidos na altura do seu lançamento? Será preciso lembrar o caso de O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, hoje em dia universalmente reconhecido como momento emblemático de emergência da modernidade cinematográfica? Será preciso sublinhar que as suas discretas receitas de bilheteira foram acompanhadas por algumas vozes pouco entusiásticas, incluindo o lendário crítico James Agee?
Peço ao leitor que não pense que estou à procura de fundamento para uma qualquer “razão” perante a qual os outros deveriam remeter-se ao silêncio. Um pouco de acordo com a máxima de Jean Renoir, segundo a qual “cada um tem as suas razões”, valerá a pena dizer que há filmes que, na sua indesmentível singularidade, nos despertam a sensação intensa, entre o racional e o intuitivo, de que nenhum futuro os apagará das memórias cinéfilas. Mais do que isso: a passagem do tempo apenas acentuará a sua radical importância histórica.
Para mim, um desses filmes é Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard (apresentado no Festival de Cannes de 2014, estreado nas salas portuguesas no começo deste ano e, há poucos dias, lançado em DVD). Há nele uma teia de relações capaz de relançar uma obsessão central do universo godardiano — as relações masculino/feminino —, agora sob o efeito de uma paisagem digitalizada em que a utilização das três dimensões serve para discutir a própria ilusão fotográfica do cinema como dispositivo “reprodutor” do mundo à nossa volta.
Estamos, de facto, perante um filme que se coloca no centro da actual conjuntura tecnológica (a noção de que Godard é um “marginal” envolve sempre uma involuntária ironia), discutindo os seus limites expressivos e também os seus efeitos quotidianos. Aliás, uma das interpretações possíveis do título Adeus à Linguagem decorre de um sentimento muito antigo, e também muito angustiado, de perda das singularidades humanas através da consagração de uma comunicação “global” que apenas obedece às exigências tecnológicas de mais circuitos e mais links.
Rever Adeus à Linguagem em DVD — em imagens “normais” de 2D — envolve um fascinante efeito complementar. De facto, compreendemos que, seja qual for o aparato técnico, Godard reage à mascarada de transparência que a televisão coloca em prática, mostrando e demonstrando que colocar em cena o factor humano é um desafio renovado que envolve a paciente discussão dos seus próprios meios de expressão. Mesmo que o sentimento de humanidade possa passar pelas belíssimas imagens do seu cão Roxy.