quarta-feira, agosto 05, 2015

A Revolução Cultural por Zhang Yimou

Gong Li / Regresso a Casa
Regresso a Casa permite-nos reencontrar a sofisticação, a um tempo histórica e dramática, do cinema do cineasta chinês Zhang Yimou — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Agosto), com o título 'Zhang Yimou reavalia os traumas da Revolução Cultural chinesa'.

O nome de Zhang Yimou continua a ser uma das referências mais fortes de um continente cinematográfico que, afinal, conhecemos de modo muito parcelar. Seja como for, a par de Chen Kaige ou, mais recentemente, Jia Zhan-ke, ele é dos poucos cineastas chineses com presença regular nas nossas salas, distinguindo-se por um olhar romanesco que nunca exclui uma visão crítica da história colectiva — assim volta a acontecer no magnífico Regresso a Casa que integrou a selecção oficial, extra-competição, do Festival de Cannes de 2014.
As convulsões da história da China contaminam todos os níveis expressivos dos filmes de Zhang Yimou, mesmo se tendemos a associá-los, sobretudo, a épocas mais ou menos remotas, transfiguradas através de encenações de exuberante espectacularidade. Lembremos os casos exemplares de Ju Dou (1990), situado num cenário rural do começo do século XX, ou Herói (2002), um épico cuja acção tem lugar cerca de dois séculos a. C., porventura o seu título mais popular (ambos obtiveram nomeações para o Oscar de melhor filme estrangeiro).
Na trajectória de Zhang Yimou, Regresso a Casa seguiu-se a As Flores da Guerra (2011), uma das produções mais ambiciosas de toda a sua carreira, fabricada com um orçamento de 94 milhões de dólares (cerca de 85 milhões de euros, na actual cotação) que, na altura, correspondia ao filme mais caro de toda a história do cinema chinês. As Flores da Guerra evocava a situação desesperada da cidade de Nanking, em 1937, sob ocupação japonesa, centrando-se na personagem de um americano que se faz passar por padre para tentar salvar as mulheres refugiadas num convento católico. Com Regresso a Casa, mergulhamos nos cenários dramáticos da Revolução Cultural, nas décadas de 1960/70, não tanto através das grandes movimentações colectivas, mas sim de uma intriga intimista, quase fechada no interior das suas fronteiras afectivas.
Esta é a história do casal formado por Lu Yanshi, um professor, e sua mulher Feng. De acordo com os princípios “purificadores” do maoísmo, Lu é enviado para um campo de trabalho, num processo que envolve de forma trágica o seu universo familiar: primeiro, porque a prisão de Lu passa por uma denúncia da própria filha, apostada em fazer esse “favor” às autoridades a fim de conseguir um lugar de destaque como bailarina; depois, porque, quando Lu regressa, Feng exibe as marcas psicológicas das formas de assédio de que foi objecto, a ponto de não reconhecer o marido...
São peripécias visceralmente melodramáticas, no sentido mais nobre que tal classificação pode envolver: a percepção dos traumas da Revolução Cultural é tratada através de acontecimentos da mais profunda intimidade, de acordo com uma dinâmica que faz com que cada sinal dessa intimidade ecoe tudo aquilo que está para além dos espaços familiares. Como sempre, a intensidade emocional do cinema de Zhang Yimou envolve um detalhado labor de direcção de actores, aqui com inevitável destaque para os dois protagonistas, Chen Daoming e Gong Li, nos papéis de Lu e Freng, respectivamente (recorde-se que Gong Li, com quem o cineasta viveu, é a musa de muitos dos seus filmes desde Milho Vermelho, produção de 1987 que constituiu um momento decisivo na afirmação internacional da chamada Quinta Geração de autores chineses).
Dizer que a obra de Zhang Yimou é um reflexo da evolução da produção cinematográfica chinesa nos últimos trinta anos é, obviamente, verdade. E tanto mais quanto alguns do seus filmes foram encontrando diversas dificuldades de difusão no próprio mercado interno — por exemplo, apesar de distinguido com um Grande Prémio de Cannes, Viver (1994), uma saga familiar que vai dos anos 40 até à eclosão da Revolução Cultural, passou de forma breve em algumas salas de Pequim e Shangai, depois desaparecendo do mercado chinês. Aliás, tal reflexo é necessariamente plural e paradoxal, até porque Zhang Yimou foi convidado a assumir uma importante tarefa oficial quando, em 2008, dirigiu as cerimónias de abertura e fecho dos Jogos Olímpicos de Pequim.
Depois de Regresso a Casa, Zhang Yimou envolveu-se em mais um projecto de invulgar ambição e grandeza. Chama-se The Great Wall, resulta de uma coprodução com os estúdios americanos da Universal e, com o seu orçamento de 135 milhões de dólares (123 milhões de euros), será o mais caro filme de sempre a ser rodado na China. Situado nos séculos X-XI, nele se narra um episódio relacionado com a construção da Grande Muralha, com um elenco liderado por Matt Damon e Andy Lau (popular actor, cantor e entertainer de Hong Kong) — o seu lançamento está agendado para Novembro de 2016, em formato 3D.
O trabalho de Zhang Yimou constitui, afinal, um dos muitos reflexos do crescimento exponencial da actividade cinematográfica no interior do seu país. A esse propósito, convém lembrar que a China é, desde 2012, o país com o segundo maior mercado de cinema (logo após os EUA); de acordo com um estudo da empresa de análise e consultoria Ernst & Young, em 2020 deverá ser o maior do mundo.