sábado, julho 11, 2015

No taxi de Jafar Panahi (1/2)

Admirável acontecimento de cinema: Taxi, de Jafar Panahi, é uma afirmação de liberdade, a par de uma discussão metódica das fronteiras do discurso cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 Julho), com o título 'Jafar Panahi filma o seu exílio ao volante de um táxi'.

Com a estreia do filme Taxi, do iraniano Jafar Panahi, podemos redescobrir o universo de um cineasta que, afinal, foi proibido de desenvolver o seu trabalho. O “caso Panahi” tornou-se mesmo um dos temas mais universais, e também mais mobilizadores, da comunidade cinematográfica internacional.
Em Maio de 2010, Panahi foi impedido de viajar até Cannes para integrar o júri do festival (presidido por Tim Burton): na cerimónia de encerramento, foi mantida uma cadeira vazia com o seu nome. Em Dezembro do mesmo ano, o Tribunal Islâmico Revolucionário condenou-o a uma pena de seis anos de prisão domiciliária e vinte anos de interdição de filmar. Desde então, a situação legal de Panahi tem suscitado os protestos de entidades políticas e governamentais, de dezenas de cineastas e também de organizações como a Amnistia Internacional, a Fundação Internacional de Cinema e a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Em 2012, o Parlamento Europeu atribuiu-lhe o Prémio Sakharov (partilhado com Nasrin Sotoudeh, advogada iraniana dos direitos humanos).
Uma coisa é certa: Panahi não tem parado de fazer cinema. Em 2011, reflectindo as condições do seu exílio caseiro, fez um filme a que deu o título, ao mesmo tempo irónico e amargo, de Isto Não É um Filme — foi um momento surpresa do Festival de Cannes desse ano, tendo sido enviado num ficheiro de computador, uma “pen” USB, escondida no interior de um bolo. Em 2013, assinou Closed Curtain (co-realizado com Kambuzia Partovi) que lhe valeu, no Festival de Berlim, o prémio de melhor argumento. No passado mês de Fevereiro, de novo em Berlim, Taxi arrebatou a distinção máxima do certame (Urso de Ouro); recebeu também o prémio de melhor filme da secção competitiva do festival atribuído pela FIPRESCI (crítica internacional), considerando que nele se “condensa a luta de todos os artistas que tentam superar as restrições da realidade, expressando as suas emoções e opiniões independentemente da censura ou das interdições estatais”.
O mínimo que se pode dizer de Taxi é que se trata de uma narrativa que, num misto de calculado artifício e metódico realismo, começa por expor a própria situação de Panahi. Isto porque ele é, afinal, o actor principal do filme, assumindo a personagem de um motorista de táxi que percorre as ruas de Teerão, revelando-nos uma galeria de passageiros representativos de uma grande variedade de gerações, comportamentos e ideologias.
Ficamos, assim, a conhecer um homem que, para dar o exemplo, considera que os ladrões deviam ser decapitados, o que suscita a condenação de uma professora que argumenta que tal violência nunca resolve os problemas sociais (em várias cenas, de acordo com uma prática corrente na sociedade iraniana, há passageiros do táxi que entraram em momentos distintos do percurso). Depois, há, por exemplo, um homem que transporta um saco com edições pirata em DVD. Com esta personagem, o filme adquire uma saborosa ambivalência, uma vez que ele trata o motorista por “Sr. Panahi” (recordando que já lhe arranjou vários filmes, incluindo um de Woody Allen), sugerindo mesmo, com evidente satisfação, que o realizador deverá estar a realizar um filme, até porque pressentiu que as pessoas com quem partilhou o transporte eram actores...
Este jogo de espelhos torna-se ainda mais intenso e, literalmente, mais familiar quando o motorista Panahi vai buscar a sobrinha à escola. Desde logo, porque ela se mostra agastada, não apenas pelo atraso, mas também porque nunca pensou que ele a viesse buscar num... taxi (desse modo podendo ser alvo da troça das colegas a quem não tem deixado de exaltar o seu “tio cineasta”); depois, porque está também empenhada em fazer cinema na escola, dando conta ao tio das recomendações recebidas no sentido de os filmes serem “distribuíveis” (sic), respeitando um elaborado conjunto de regras, em particular na representação dos “bons” e dos “maus”. Foi a própria sobrinha de Panahi que, entre risos e lágrimas [video], recebeu o Urso de Ouro de Berlim atribuído a Taxi.