domingo, julho 26, 2015

Amy Winehouse — o filme (2/2)

O filme de Asif Kapadia sobre Amy Winehouse constitui um brilhante exercício documental, desde já com um lugar importante nas relações entre cinema e a paisagem imensa do rock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Julho), com o título 'Memórias e fantasmas da música rock'.

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Em entrevistas que deu por altura da apresentação de Amy no Festival de Cannes (extra-competição), Asif Kapadia lembrou que o seu método de trabalho foi, em parte, semelhante ao que pôs em prática em Senna (2010), o filme sobre Ayrton Senna que obteve dois prémios BAFTA (melhor documentário e melhor montagem). Que é como quem diz: encarar a produção do filme, não como a ilustração de um retrato pré-definido, antes como um processo de investigação e descoberta que começa nos materiais mais genuínos de uma vida.
De facto, a definição de Amy Winehouse como uma vítima do consumo de drogas e, em particular, de álcool não bastaria para contar os seus 27 anos de vida (morreu no dia 23 de Julho de 2011, na sua casa de Camden, Londres). Era importante não perder de vista o que se diz em Frank (2003) e Back to Black (2006), os dois únicos álbuns de estúdio que nos legou. Até porque as suas canções, não sendo auto-biográficas no mais banal plano “factual”, surgem sempre enredadas numa tocante dimensão confessional — “as minhas lágrimas secam por si”, diz ela numa canção de Back to Black.
Amy consegue essa coisa rara que é retratar alguém não como uma acumulação de “facetas” (a vida de artista, os problemas familiares, a exposição nos media, etc.), antes através de uma teia de factos e evocações em que tudo comunica com tudo. Nesta perspectiva, importa destacar, não apenas o extraordinário trabalho de recolha de elementos informativos (desde documentos pessoais até registo de performances ao vivo muito pouco vistas), mas também o modo como a sua articulação é feita através da subtil montagem assinada por Chris King (que já tinha sido responsável, com Gregers Sall, pela montagem de Senna).
Amy possui uma fundamental dimensão crítica que, infelizmente, não tem sido das mais ponderadas. Assim, através de espantosos, porque eloquentes, materiais de informação (fotos e reportagens) utilizados por alguns jornais e televisões, este é também um filme sobre a degradação moral de algumas formas contemporâneas de jornalismo.
Não se trata, entenda-se, de “culpar” os media pelas coisas mais terríveis que aconteceram na curta vida de Amy Winehouse — aliás, reduzir tudo o que acontece a uma oposição maniqueísta entre “inocentes” e “culpados” é táctica corrente desse jornalismo mais medíocre. Trata-se, isso sim, de não escamotear o facto de os altos e baixos (sobretudo os baixos...) da vida de Amy Winehouse terem sido vergonhosamente explorados através de imagens de “reportagem” que, agora, no contexto do filme de Asif Kapadia, é possível avaliar em toda a sua violência moral e afectiva.
Não há, de facto, muitos filmes assim, capazes de nos fazer compreender como uma existência individual transporta os enigmas da sua verdade global, reflectida em todos os seus instantes, desde a alegria mais cristalina ao sofrimento mais atroz. Não necessitaríamos de conhecer tais elementos para admirar o génio das canções de Amy Winehouse — o certo é que o filme de Asif Kapadia intensifica, se tal é possível, as emoções do seu universo musical.