sexta-feira, julho 17, 2015

A cinefilia e os seus fantasmas

No desenlace do festival Curtas Vila do Conde, um filme de Mark Rappaport emerge como símbolo de alguns dos mais fascinantes caminhos do cinema contemporâneo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Julho), com o título 'Os fantasmas cinéfilos de Vila do Conde'.

Faz parte da tradição do Curtas Vila do Conde (4-12 Julho) fazer coexistir as propostas clássicas com filmes que apostam em derivações mais ou menos experimentais. Mérito do festival, sem dúvida, que continua a ser um evento singular e estimulante no panorama português. Em todo o caso, um conjunto significativo de títulos desta 23ª edição deixa uma dúvida que vale a pena tentar compreender em todas as suas implicações.
É uma dúvida eminentemente cinéfila, sobretudo se formos capazes de entender a noção de cinefilia na sua dimensão mais depurada e exigente. Não se trata, portanto, de favorecer o simplismo de muitos discursos de natureza televisiva que tendem a reduzir a história do cinema a uma lengalenga de fait divers pitorescos (nos últimos anos contaminada pela mitologia pueril dos “efeitos especiais”). Trata-se, isso sim, de revalorizar a cinefilia como uma atitude que não abdica de manter uma relação ágil com as memórias do próprio cinema — o cinema tem uma história; não é uma colecção de curiosidades sobre os milhões que se gastaram na mais recente saga de super-heróis.
Mark Rappaport
Uma das produções do próprio festival (gerada no contexto de uma residência artística), lida de forma peculiar com tal questão. Assinada por Miguel Clara Vasconcelos, chama-se Vila do Conde Espraiada e integra diversas memórias registadas em matéria fílmica (em particular filmes de família em película Super 8). As imagens antigas, porventura nostálgicas, de Vila do Conde servem, assim, para lembrar que nenhum tempo é linear, definindo-se sempre a partir de infinitos cruzamentos entre passado e presente, subjectivo e objectivo.
Nesta perspectiva, um dos acontecimentos centrais desta edição de Vila do Conde foi, sem dúvida, o filme (auto-denominado “vídeo-ensaio”) Becoming Anita Ekberg, de Mark Rappaport. Vale a pena lembrar — e tal memória envolve também componentes cinéfilas — que Rappaport é um dos nome grandes das margens mais marginais da produção independente americana, tendo sido, entre nós, uma das revelações dos tempos heróicos do Festival da Figueira da Foz (onde esteve presente, em finais da década de 70).
À semelhança de trabalhos anteriores, como Rock Hudson’s Home Movies (1992) ou From the Journals of Jean Seberg (1995), Rappaport evoca Anita Ekberg (1931-2015) como uma figura cujo poder mitológico a coloca, de alguma maneira, no país acolhedor dos fantasmas cinéfilos. A partir de uma espantosa montagem de fragmentos dos seus filmes — com inevitável destaque para A Doce Vida (1960), de Federico Fellini —, participamos, assim, numa viagem reveladora: por um lado, para além do mito, redescobrimos a presença da mulher; por outro lado, compreendemos que a mitologia é também aquilo que resiste a todos os realismos, de alguma maneira promovendo a coabitação entre os simulacros do espectáculo e as marcas cruéis do tempo que passa.