O Olhar do Silêncio, de Joshua Oppenheimer, evoca a história trágica da Indonésia através de um prodigioso dispositivo cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Junho), com o título 'Uma psicanálise cinematográfica'.
No mundo da comunicação audiovisual, as grandes diferenças não decorrem dos meios disponíveis, muito menos da presença de uma ou outra “vedeta”. O que está em jogo é muito mais radical. A saber: como é que uma determinada narrativa (cinematográfica, televisiva, algures na Internet...) problematiza o cruzamento de olhares que as imagens pressupõem ou engendram.
Prolongando o filme anterior de Joshua Oppenheimer, O Acto de Matar (2012), O Olhar do Silêncio é um objecto precioso sobre esse cruzamento, sugestivamente organizado a partir do labor de um especialista em oftalmologia. Através das sequências em que ele testa novas lentes em várias personagens, incluindo os assassinos do seu irmão, somos introduzidos num labirinto em que, por efeito de uma dupla crueldade, as imagens estão em falta. Para além das singularidades históricas ligadas ao contexto da Indonésia, em meados da década de 60, o trabalho de Oppenheimer vem integrar-se numa galeria de filmes que desafiam o (in)visível, desde A Imagem que Falta (2013), de Rithy Panh, sobre os Khmer Vermelhos do Cambodja, até à referência tutelar de Shoah (1985), com que Claude Lanzmann dissecou a Solução Final dos nazis contra o povo judeu.
A questão do olhar coloca-se mesmo a partir de um dispositivo de linguagem (campo/contracampo) tão primitivo quanto essencial. O Olhar do Silêncio é pontuado pelas situações em que, num pequeno televisor, o protagonista vê os depoimentos, registados pelo próprio Oppenheimer, dos protagonistas da matança anti-comunista. São momentos que nos revelam o cinema como arte visual capaz de transcender as imagens, na procura da palavra como instrumento filosófico e cognitivo — dir-se-ia um reencontro com os traumas da história através de uma psicanálise cinematográfica.