Manhã de Santo António, de João Pedro Rodrigues, é mais uma curta-metragem portuguesa que consegue "furar" as rotinas e chegar às salas escuras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Junho), com o título 'Uma visão poética de ruas e jardins de Lisboa'.
Tendo em conta o volume de curtas-metragens que se produzem em Portugal, os respectivos lançamentos no circuito comercial são, obviamente, deficitários. Quanto mais não seja por isso, importa destacar o aparecimento de Manhã de Santo António (2012), de João Pedro Rodrigues (como complemento de Mekong Hotel, do tailandês Apichatpong Weerasethakul). Importa, acima de tudo, sublinhar as singularidades do olhar de um cineasta que, desde Parabéns! (1997), outra curta-metragem, tem sabido consolidar a delicadeza dos seus temas, depurando as suas componentes formais.
Através de algumas longas-metragens — O Fantasma (2000), Odete (2005) e Morrer com um Homem (2009) —, ou de outras curtas (penso, por exemplo, em China China, produção de 2007, co-assinada com João Rui Guerra da Mata), João Pedro Rodrigues tem sido um retratista dos enigmas da identidade amorosa. De uma maneira ou de outra, o seu cinema imiscui-se no jogo de espelhos do desejo, repetindo a mais primitiva interrogação: como é que o laço amoroso transfigura os seus protagonistas, a ponto de cada um deles não saber o que dá ou o que recebe?
Manhã de Santo António instala uma desconcertante ironia no interior dessa dinâmica, apelando às memórias tradicionais das celebrações do dia de Santo António. Será preciso dizer que nada do que aqui acontece tem a ver com as matrizes mais mediáticas com que a data é habitualmente assinalada?... João Pedro Rodrigues aposta na possibilidade de “devolver” os pares de namorados, emblemáticos nas festas do Santo António, à geografia mitológica da cidade.
Daí o efeito mais forte (entenda-se: mais poético) de Manhã de Santo António: por um lado, reconhecemos ruas e jardins de Lisboa, naquilo que, até certo ponto, se pode considerar uma visão “descritiva” de espaços do nosso quotidiano; por outro lado, a transparência dos lugares vai sendo posta em causa por uma estranheza à beira do fantástico, como se contemplássemos um mapa outro que já não obedece às regras do trânsito (em sentido literal ou figurado), mas apenas a um imaginário nostálgico da própria cidade.
A recente reposição de dois clássicos de Paulo Rocha — Os Verdes Anos (1963) e Mudar de Vida (1966) —, entretanto lançados em DVD, pode suscitar um paralelismo curioso. Escusado será dizer que há enormes diferenças, materiais e simbólicas, entre a época em que Paulo Rocha realizou os seus filmes e o contexto actual da produção portuguesa. Em todo o caso, não será abusivo considerar que podemos encontrar em qualquer um destes títulos um mesmo desencanto realista. Nesta perspectiva: as evidências dos eventos narrados atraem qualquer coisa de indizível que, por assim dizer, pertence à magia que o próprio realismo pode conter. Além do mais, vale a pena referir que o núcleo da acção de Os Verdes Anos, na Avenida de Roma, se situa a algumas dezenas de metros dos principais cenários de Manhã de Santo António.