domingo, junho 07, 2015

As cidades do futebol

PIETR MONDRIAN
Broadway Boogie-Woogie
1942-43
Através da televisão (e não só), futebol passou a deter o poder imenso de reconfigurar a geografia, e também a mitologia, das nossas cidades — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Junho).

Com o passar dos anos, a aliança tácita dos dispositivos dominantes da televisão com as forças do futebol foi transfigurando algumas referências emblemáticas da história das nossas cidades. Em particular em Lisboa e Porto, cada vez que um dos seus clubes ganha um qualquer troféu, rapidamente se assiste a uma vaga de ocupação de determinados espaços urbanos em que os directos televisivos funcionam, de uma só vez, como incentivo e celebração.
Na sua épica demissão cultural, os partidos políticos nada têm a dizer sobre o facto de alguns lugares simbólicos do nosso tecido urbano — carregados de história e memórias essenciais para a compreensão de muitos séculos da nossa identidade colectiva — terem passado a significar apenas em função da sua ocupação futebolística. Aliás, explicita ou implicitamente, as forças políticas tendem a caucionar tal parasitismo de significações: na prática, aceitam conferir aos profissionais do futebol uma evidência social, um protagonismo mediático e uma exaltação à beira do religioso que, em boa verdade, não têm paralelo com a percepção corrente de qualquer outra actividade profissional.
A sacralização televisiva do mundo do futebol vai a par da regular humilhação de muitas outras profissões (a começar, por cruel ironia, por algumas actividades com componentes políticas). Veja-se a percepção dominante dos ganhos de quem tem responsabilidades de administração. Qualquer gestor de uma empresa com um ordenado de alguns milhares de euros corre o risco de ser apontado como suspeito automático das mais inconfessáveis diatribes. Ao mesmo tempo, discutem-se (perdão, analisam-se) os milhões que ganham os protagonistas do futebol como se eles fossem os embaixadores terrenos de uma verdade celestial, transcendente e intocável. Repare-se: não é uma questão de cifrões que está em causa — é, isso sim, uma visão do mundo em que toda a vida social se reduz, diariamente, às cidades, cerimónias e narrativas do futebol.