quarta-feira, junho 03, 2015

Abel Ferrara directo para DVD

O filme de Abel Ferrara, Bem-Vindo a Nova Iorque, saíu directamente em DVD — este texto, com o título 'A saga de um autor católico', foi publicado no Diário de Notícias (1 Junho), a par de uma entrevista com Jacqueline Bisset, realizada por Rui Pedro Tendinha.

Tem razão Jacqueline Bisset quando relembra que seria um erro esperar glamour de um filme como Bem-vindo a Nova Iorque, de Abel Ferrara: ao criar uma ficção inspirada no caso de Dominique Strauss-Kahn (transfigurado na personagem do imenso Devereaux, interpretado por Gérard Depardieu), Ferrara coloca-se — e coloca-nos — muito para além de qualquer lógica “escandalosa”, típica do mais rasteiro mediatismo jornalístico e televisivo.
Abel Ferrara
Estamos a falar do autor de filmes como Polícia sem Lei (1992), Os Viciosos (1995) ou o recente e admirável Pasolini (2014). Daí a pergunta muito cândida: que passou pelas cabeças de distribuidores e exibidores de todo o mundo, a ponto de acreditarem que podiam ter em Bem-Vindo a Nova Iorque uma espécie de Emmanuelle do séc. XXI, para vender com um rótulo mais ou menos “erótico”?
Não tenho resposta, nem pretendo massacrar esses distribuidores e exibidores com lições de moral. Em todo o caso, não posso deixar de constatar um facto que excede o contexto português: um pouco por toda a parte, Bem-vindo a Nova Iorque transformou-se num objecto mais ou menos marginal, lançado de forma discreta, quase sempre sem passar pelas salas escuras.
O evento é sintomático de uma conjuntura global: um filme que não encaixe nos modelos correntes do mercado (entenda-se: sustentados por grandes campanhas), corre o risco de desaparecer num qualquer buraco negro que, tragicamente, o impede de cumprir as suas potencialidades comerciais. Porque, à sua maneira, Bem-vindo a Nova Iorque procura os espectadores, explorando o mais universal dos temas. A saber: o confronto do ser humano com o vazio do seu desejo e, em última instância, a possibilidade de redenção. Será preciso repetir que Ferrara é um autor profundamente marcado pelo imaginário católico?