De que falamos quando falamos de "cinema-espectáculo-popular"? A reedição, em DVD, de A Missão (1986) poderá ser um bom pretexto de reflexão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Maio), com o título 'Celebrando um filme épico rodado em 1986'.
Que mudou no cinema popular? A pergunta está cheia de armadilhas, quanto mais não seja porque, em diferentes discursos, o adjectivo “popular” surge envolvido com os mais contrastados contextos, significados e valores. Limito-me, aqui, a recolocar a questão a propósito de um grande sucesso que já tem quase trinta anos, recentemente relançado no mercado do DVD: A Missão (1986), filme épico de Roland Joffé sobre a missão de um padre jesuíta na América do Sul, em meados do século XVIII, tentando proteger uma tribo ameaçada por práticas esclavagistas, nomeadamente da coroa portuguesa.
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A primeira e fundamental diferença tem a ver com o simples gosto de construir personagens. O confronto entre o padre Gabriel (Jeremy Irons) e o mercador de escravos Rodrigo Mendoza (Robert De Niro) não é um mero conflito maniqueísta para simbolizar a “história” — somos confrontados com figuras de invulgar complexidade cuja inscrição naquele contexto é sempre dinâmica, em permanente processo de transfiguração. Será preciso recordar que A Missão é um filme escrito por um mestre chamado Robert Bolt (1924-1995), argumentista de clássicos de David Lean como Lawrence da Arábia (1962) e Doutor Jivago (1965)?
Produtos como Os Vingadores, bem pelo contrário, reduziram as suas personagens a meros índices de marketing. E também não será preciso repetir que nada disso resulta das suas raízes na BD — nenhuma personagem é mais ou menos interessante em função do contexto (histórico ou ficcional) em que surgiu. Acontece que uma personagem é algo mais do que um “boneco” capaz de dar origem a um cartaz apelativo: a sua energia é indissociável das tensões que se estabelecem entre o seu programa de acção e as componentes dramáticas do contexto em que se move.
Contexto, justamente — eis o que mudou de forma brutal. Em Os Vingadores, já não há qualquer concepção cenográfica: o espaço passou a ser tratado como uma arbitrariedade digital em que se pode mudar de uma imagem para outra apenas para exibir os “poderes” da tecnologia. No pólo oposto, A Missão é ainda um filme em que a aventura narrada se confunde com os riscos aventurosos da própria rodagem (em exuberantes cenários naturais da Colômbia, Argentina, Brasil e Paraguai). As suas belíssimas imagens valeram, aliás, o Oscar de melhor fotografia a Chris Menges, celebrando de forma exemplar a noção básica segundo a qual o cinema é, antes do mais, uma revelação visual.