Matthias Schoenaerts e Michelle Williams, em Suite Francesa |
Suite Francesa é, antes do mais, um espantoso livro sobre a França ocupada pelas tropas de Adolf Hitler. E é também agora um filme sintomático de toda uma tendência de revisitação das memórias da Segunda Guerra Mundial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Abril), com o título 'À procura da tradição e das emoções do melodrama de guerra'.
Em anos recentes, temos podido descobrir alguns filmes magníficos sobre memórias da Segunda Guerra Mundial. Penso em obras tão diversas como Lore (2012), da australiana Cate Shortland, ou Ida (2013), do polaco Pawel Pawlikowski, este distinguido há pouco mais de um mês com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Para lá das suas muitas diferenças, o que parece uni-los é a preocupação de superar qualquer dependência em relação às matrizes do mais tradicional filme de guerra.
Dir-se-ia que Suite Francesa, realizado pelo inglês Saul Dibb a partir do romance homónimo de Irène Némirovsky (editado entre nós pela D. Quixote, com tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira), corresponde a uma tentativa de devolver tal fenómeno precisamente às suas raízes clássicas. Na França ocupada, a história da paixão de Lucille Angellier (Michelle Williams) por um oficial das tropas alemãs, Bruno von Falk (Matthias Schoenaerts), surge como um empreendimento nostálgico do melodrama de guerra, género tão importante na produção europeia e americana das décadas de 1940/50.
Ucraniana de origem judaica, Némirovsky quis escrever um enorme fresco sobre a ocupação da França pelos nazis, projecto que ficou incompleto, tendo sido deportada para Auschwitz, onde foi morta no Verão de 1942. Porventura consciente da dimensão grandiosa do livro (que, em todo o caso, contém apenas duas das cinco partes que a autora tinha projectado), Saul Dibb elabora um “resumo” concentrado no trio constituído por Lucille, Bruno e Madame Angellier (Kristin Scott Thomas), sogra de Lucille.
Suite Francesa evolui, assim, na corda bamba, tentando revitalizar um modelo de espectáculo que, por definição, pertenceu a outros contextos com outros conceitos e parâmetros de produção. E podemos pensar num exemplo de Hollywood como o inevitável Casablanca (1942), de Michael Curtiz; ou num outro, inglês, como Um Caso de Vida ou de Morte (1946), de Michael Powell e Emeric Pressburger — Suite Francesa não sustenta a comparação, tanto mais que se organiza a partir de modelos de “reconstituição” mais ligados a uma certa visão instrumental de cenários e personagens, mais típica de formatos televisivos.
Seja como for, na sua evidente fragilidade, Suite Francesa possui a sedução de um objecto fora de moda, nostálgico de uma outra paisagem narrativa, indissociável de um diferente contexto industrial. Vale, sobretudo, pelo modo como as personagens existem num misto de exposição e ocultação que encontra a sua expressão mais subtil nas composições de Kristin Scott Thomas e Matthias Schoenaerts (lembram-se dele em Ferrugem e Osso, de Jacques Audiard?). Fica a faltar uma genuína heroína romântica, talvez porque Saul Dibb gere de forma ligeira as convulsões dramáticas da sua heroína, mas sobretudo porque falta a Michelle Williams esse misto de vibração física e glamour que distingue as grandes actrizes dos clássicos melodramas de guerra.