segunda-feira, março 09, 2015

O Bem e o Mal por Andrey Zvyagintsev

Grande filme de Andrey Zvyangintsev: uma parábola filosófica numa cidade russa onde a fragilidade do Bem depara com a insídia do Mal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Março), com o título 'O Bem e o Mal face a face no cenário de uma pequena cidade da Rússia'.

É bem verdade que muitas experiências cinematográficas dos nossos dias, enraizadas nos mais diversos contextos geográficos e culturais, apostam na revalorização de algumas formas de realismo. Por uma feliz coincidência, chegam hoje [quinta-feira, 5 Março] às salas portuguesas dois títulos marcados por essa vontade, ambos com significativo impacto no Festival de Cannes de 2014: Uma Jaula de Ouro, do mexicano de origem espanhola Diego Quemada-Díez, passou na secção “Un Certain Regard”, onde recebeu o Prémio Un Certain Talent; Leviatã, distinguido na competição oficial com o prémio de melhor argumento, é mais um exemplo brilhante do trabalho do russo Andrey Zvyagintsev, autor que, apesar das limitações de oferta do nosso mercado, não deixa de ser um nome conhecido dos espectadores portugueses — duas das suas anteriores três longas-metragens (O Regresso e Elena, respectivamente de 2003 e 2011), foram vistas nas nossas salas.
A dimensão realista de Leviatã provém da minúcia obsessiva com que Zvyagintsev contempla as atribulações públicas e privadas dos habitantes de uma pequena cidade da Rússia. Curiosamente, a origem do projecto está ligada à descoberta de uma história americana. Foi em 2008, durante a rodagem da curta-metragem Apocrypha (para o filme de episódios New York, I Love You, em cuja montagem final acabaria por não surgir), que Zvyagintsev tomou conhecimento da saga de Marvin Heemeyer (1951-2004), um soldador do Colorado que, por causa de uma disputa pelos terrenos onde se situava a sua oficina, se envolveu num confronto brutal com as autoridades.
Zvyagintsev ficou impressionado com tal relato (as suas inusitadas formas de violência tiveram imenso impacto mediático na sociedade americana), a ponto de sugerir ao seu amigo e colaborador
Oleg Negin a possibilidade de escreverem um argumento que funcionasse como uma “versão” russa do caso de Heemeyer. Escusado será dizer que as peripécias da história de Leviatã são muito diferentes. O certo é que a personagem central de Kolya (Alexei Serebriakov) vive também uma experiência de confronto com as autoridades, em particular com Vadim (Roman Madyanov), um presidente da câmara corrupto que tenta apropriar-se da casa onde o protagonista vive com Lilia (Elena Lyadova) e Roma (Sergey Pokhodaev), filho do primeiro casamento de Kolya.
A certa altura, a construção de Leviatã superou por completo a sua primeira inspiração. Como o próprio Zvyagintsev explicou, o trabalho com Negin veio a integrar influências muito diversas, desde a história bíblica de Job até às considerações sobre o contrato social e os fundamentos da governação política desenvolvidas no séc. XVII pelo filósofo inglês Thomas Hobbes, nomeadamente no seu Leviathan.
Daí a sensação paradoxal que o filme de Zvyagintsev talvez não possa deixar de desencadear. Por um lado, Leviatã é um objecto que possui o fôlego de uma perturbante parábola moral e filosófica: o Bem e o Mal estão presentes num confronto dramático que contamina todas as formas de comportamento humano, desde a esfera política até às zonas da mais radical intimidade. Por outro lado, as sugestões simbólicas nunca contrariam, antes parecem reforçar, a intensidade realista que Zvyagintsev coloca em todos os detalhes, por vezes evocando de forma muito directa e cáustica as memórias ainda muito próximas do comunismo (há mesmo uma cena de prática de tiro em que os alvos são os retratos oficiais de algumas figuras emblemáticas da história da União Soviética).
Rodado na região de Murmansk, cidade portuária do mar de Barents, no noroeste do território russo, Leviatã nasceu, assim, da metódica combinação desse rigor realista com um elaborado gosto simbólico. De tal modo que Zvyagintsev não se coibiu de integrar os elementos mais artificiosos nos impressionantes cenários naturais. Assim, por exemplo, o esqueleto de uma baleia azul (que se tornou um ícone da promoção do próprio filme) foi minuciosamente fabricado pela equipa de cenógrafos — mede 24 metros e pesa uma tonelada e meia.