quinta-feira, março 05, 2015

A segunda pele de Leonard Nimoy

CATLOW (1971)
A biografia de Leonard Nimoy confunde-se com a saga de Mr. Spock: o que resta do actor para além da personagem? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Fevereiro).

Qual a pior coisa que pode acontecer a um actor? Ser reduzido a uma das suas personagens e, no limite, confundido com ela. Leonard Nimoy viveu esse assombramento de forma serena, dir-se-ia através de uma simplicidade herdada da própria frieza lógica que distingue o inconfundível Mr. Spock. De tal modo que escreveu dois livros autobiográficos, em 1977 e 1995, cujos títulos, na sua assumida contradição, condensam o insólito de toda uma trajectória artística: o primeiro chamava-se Eu Não Sou Spock; o segundo... Eu Sou Spock.
Por mais desconcertante que isso possa parecer, em meados da década de 60, quando assinou o primeiro contrato para interpretar Spock, Nimoy dava aulas de representação segundo as regras do Método de Stanislavski. Como muitos outros actores de Hollywood, parecia destinado a uma carreira segura, sem sobressaltos, marcada sobretudo por papéis dispersos nas mais populares séries televisivas da época (Quinta Dimensão, Perry Mason, O Homem da U.N.C.L.E., etc.). E se é verdade que as subtilezas emocionais do Método não terão sido um recurso fundamental para compor o hierático Spock, não é menos verdade que, através dele, Nimoy passou da condição de eterno secundário a ícone da cultura popular audiovisual.
Encontramo-lo em alguns títulos emblemáticos da reconversão temática e estética do cinema americano ao longo dos anos 70, incluindo Catlow (1971), de Sam Wanamaker, um dos westerns “revisionistas” da época, e A Invasão dos Violadores (1978), de Philip Kaufman, remake de um clássico de ficção científica (The Invasion of the Body Snatchers) realizado por Don Siegel em 1956. O certo é que a pose de Spock se colou à sua imagem como uma segunda pele — falta fazer um filme sobre a crueldade feliz dessa prisão simbólica.