segunda-feira, fevereiro 02, 2015

Cinema e Holocausto (2/2)

A Segunda Guerra Mundial terminou há 70 anos: o cinema continua a ser uma paisagem fundamental para lidar com as suas memórias e, em particular, com as imagens dos campos de concentração construídos pelos nazis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Janeiro), com o título 'As palavras e as coisas'.

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Num dos filmes centrais da modernidade, Paixão (1982), Jean-Luc Godard propunha uma viagem vertiginosa pelas nossas relações com as imagens — e pelas relações que estabelecemos através das imagens —, dando conta do labor de uma equipa de cinema empenhada em reencenar, em estúdio, algumas obras-primas da pintura, incluindo, por exemplo, A Ronda da Noite (1642), de Rembrandt. Não era um banal exercício de cópia, antes um processo criativo que, por assim dizer, reactivava a herança da dicotomia expressa no título de um estudo incontornável de Michel Foulcault: As Palavras e as Coisas (1966). Ou como Godard fazia dizer a uma das suas personagens: “É difícil ver as coisas antes de falar delas”.
A estreia de três filmes sobre o Holocausto — A Noite Cairá, O Homem Decente e O Último dos Injustos — não pode ser separada desta dramática cumplicidade do ver e do falar. E tanto mais quanto vivemos todos os dias bloqueados pelo discurso agressivo de muitos dispositivos televisivos que tende a iludir a dificuldade de ver, promovendo o ruído pueril de uma palavra a que foi retirada qualquer exigência de responsabilidade (observe-se a demagógica proliferação de espaços de discussão “pública”).
Com o seu filme O Último dos Injustos, derivação lógica do impressionante Shoah (1985), Claude Lanzmann conduz esta dúvida metódica a um grau de impressionante contundência. Filmando — aliás: filmando-se — nos lugares agora serenos dos campos de concentração, Lanzmann não se limita a descrever os crimes nazis contra a humanidade. Num gesto moral indissociável do labor das formas cinematográficas, ele diz, afinal, que a sua fala sobre aqueles lugares é já uma forma de ver e partilhar uma visão — uma palavra que vê, eis o mais contundente instrumento político.