Para onde vai a ficção televisiva made in Portugal? Ou melhor: como libertá-la da formatação telenovelesca? — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV" (Diário de Notícias), no dia 28 de Dezembro, com o título 'Vivendo sob a ditadura da telenovela'.
Que aconteceu na orientação global da ficção televisiva portuguesa ao longo de 2014? Quase nada, a não ser o obsceno reforço da ditadura da telenovela. E também, em paralelo, o continuado silêncio das forças político-partidárias que, por cobardia ou indiferença, continuam a alimentar a ideia de que é possível pensar a cultura portuguesa contemporânea sem algum tipo de reflexão sobre os padrões narrativos que, todos os dias, há quase 40 anos, são impostos ao povo português. Isto, convém não esquecer, no mesmo ano em que o cinema português gerou coisas tão admiráveis como Cavalo Dinheiro (Pedro Costa), E Agora? Lembra-me (Joaquim Pinto) ou Os Maias (João Botelho).
Podia ser doutra maneira? Claro que sim. E não se trata de sugerir que haja soluções mágicas para transformar um sistema de produção que, além do mais, continua a menorizar os actores portugueses (ou a criar falsos actores que “interpretam” novelas com a mesma consciência volátil com que posam para as páginas da imprensa dos “famosos”). Trata-se apenas, pela milionésima vez, de lembrar o óbvio: não há nenhuma razão, estrutural ou financeira, muito menos artística ou estética, que imponha a telenovela como esse formato repetitivo que passou a ocupar infinitas horas das programações.
Curiosamente, há dias, no programa Nas Nuvens (Canal Q), de Nuno Artur Silva, o escritor José Luís Peixoto evocou uma conjuntura televisiva bem diferente. Falando de Fernando Namora, referiu a série adaptada de um dos seus romances, Retalhos da Vida de um Médico (1980), com realização de Jaime Silva. Com natural espanto, Peixoto lembrou que, entre os seus argumentistas, a série contava com os nomes de escritores como Urbano Tavares Rodrigues, Dinis Machado e Nuno Bragança (pequeno lapso: o terceiro nome seria, de facto, Bernardo Santareno; o leque de argumentistas era completado por Carlos Coutinho e Olga Gonçalves).
É uma observação certeira, que importa sublinhar. Entenda-se: não porque se pretenda favorecer a noção banal, profundamente simplista, segundo a qual a ficção produzida para televisão, para ser “séria”, deva depender de qualquer relação subsidiária com a literatura e os criadores literários. Nada disso. Acontece que, melhor ou pior, a gestação de obras como a citada corresponde a um entendimento muito mais ágil daquilo que se pode criar no interior do espaço televisivo.
O ano de 2014 está, aliás, recheado de magníficos exemplos. Séries como The Knick (com que Steven Soderbergh revisita os tempos atribulados de um hospital de Nova Iorque nos primeiros anos do séc. XX), House of Cards ou The Newsroom ilustram um empolgante entendimento criativo da produção para televisão. E importa não ceder à chantagem ideológica segundo a qual a sua existência depende de recursos financeiros de outra dimensão. É verdade, mas a primeira e fundamental diferença não é orçamental — tem a ver com o respeito pela inteligência do espectador.