quarta-feira, janeiro 07, 2015

Pasolini ou o público e o privado

No seu Pasolini, Abel Ferrara encena um cineasta marcado pela história trágica de Itália: o filme foi feito logo após Welcome to New York (ainda por estrear entre nós), inspirado no escândalo de Dominique Strauss-Kahn — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Dezembro), com o título 'A difícil arte de viver'.

Mais do que nunca, importa não confundir as rotinas televisivas com a verdade intrínseca do cinema, lembrando que há uma diferença vital entre a abordagem formatada da história e o risco — artístico e humano — assumido por um genuíno cineasta. Quantas vezes já ouvimos os autores de telenovelas e afins, garantindo que o seu trabalho envolve uma “verdade” que nasceria da mera acumulação de documentos ou do realismo de cenários e guarda-roupa? Pois bem, Abel Ferrara faz um filme admirável sobre Pier Paolo Pasolini (1922-1975) e fá-lo em nome do que não sabemos. Mais do que isso: fá-lo porque, no limite, o cineasta de obras radicais como O Evangelo Segundo São Mateus (1964), Teorema (1968) ou Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975) permanece um fascinante mistério.
Entenda-se: nada a ver com a obscuridade pela obscuridade. O que Ferrara coloca em cena [entrevista] é a clivagem entre a imagem pública do artista (Pasolini como o cineasta inevitavelmente polémico, tendencialmente escandaloso) e as singularidades das suas vivências mais íntimas. Daí que sintamos que a obra não existe como um “espelho” da vida, antes como uma componente essencial da própria arte de viver (que Brecht considerava como a mais difícil de todas as artes). Daí também, como sempre, a importância emocional dos actores no universo de Ferrara: Willem Dafoe compõe um Pasolini tão transparente quanto indecifrável, dando-nos a ver o labor afectivo das suas próprias ideias; a mãe do cineasta está entregue à sereníssima Adriana Asti (luminosa revelação, em 1960, de Rocco e os Seus Irmãos, de Luchino Visconti); e no papel da actriz Laura Betti, amiga muito próxima de Pasolini, Maria de Medeiros tem aquela que é, por certo, uma das melhores composições de toda a sua carreira.