segunda-feira, janeiro 05, 2015

Madonna nas malhas da Net (1/2)

MADONNA / Instagram
As peripécias digitais em torno do álbum Rebel Heart, de Madonna, são sintoma de um perverso contexto tecnológico em que a "transparência" da Net favorece uma sistemática agressividade contra qualquer identidade artística — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Dezembro), com o título 'Como a Material Girl foi apanhada nas malhas perversas da Internet'.

Com mais de três décadas de carreira, Madonna é uma daquelas personalidades a que, pela positiva ou pela negativa, todos reconhecem uma invulgar capacidade de recriação e reinvenção. Através das matrizes da música pop, mas também abraçando tendências diversas da moda, a eterna “Material Girl” (aos 56 anos, há quem ache por bem promovê-la a “Material Mom”) tem sido um símbolo nuclear da cultura popular.
Nos últimos tempos, dir-se-ia que os instrumentos dessa cultura — e, em particular, as formas mais perversas do seu aparato tecnológico — se viraram contra ela. Assim, em finais de Novembro, quando a sua máquina promocional começava a divulgar informações específicas sobre um novo álbum de estúdio (13º de uma discografia iniciada em 1983, com Madonna), duas das respectivas canções foram pirateadas na Net. A 17 de Dezembro, seria a hecatombe: treze canções surgiram em diversos sites, alguns deles acrescentando que o novo disco se intitularia Iconic.
Madonna apressou-se a esclarecer que se tratava de um conjunto de versões irrelevantes, muito primitivas no processo de produção do álbum, utilizando mesmo a sua conta do Instagram para denunciar a “violação artística” de que estava a ser alvo. O certo é que a situação obrigou a uma reconversão de toda a estratégia de lançamento do álbum que, em qualquer caso, se chamará Rebel Heart: no dia 20 de Dezembro, seis das suas canções foram oficialmente colocadas à venda no iTunes. Entre os temas disponibilizados, estava Living for Love, inicialmente escolhido para ser o primeiro single, com lançamento agendado para o Dia dos Namorados (14 Fevereiro). Paradoxalmente, ou talvez não, este lançamento precipitado pelos acontecimentos gerou um forte impacto comercial: em 41 países, Madonna voltou a liderar os tops de vendas.
Ainda assim, a divulgação pirata não terminara, tendo surgido mais 14 “demos” (incluindo uma colaboração com Pharrell Williams) dois dias antes do Natal, de alguma maneira emprestando uma conotação amargamente irónica ao facto de Madonna ter definido as primeiras seis canções oficiais de Rebel Heart como uma “prenda de Natal antecipada” para os seus fãs. Na prática, é bem provável que, de uma maneira ou de outra, em versões mais ou menos (in)acabadas, a totalidade dos temas do álbum já tenha sido tornada pública — se Madonna e o seu staff não alterarem o que já foi anunciado, a versão integral de Rebel Heart estará à venda no dia 10 de Março de 2015.
Todas estas atribulações confirmam o dramatismo que passou a envolver a relação dos criadores musicais, sobretudo as estrelas pop, com os novos sistemas digitais de difusão. E não é por acaso que alguns analistas têm evocado as opções extremas (para não dizer extremistas) de nomes como David Bowie ou Beyoncé que, em 2013, conseguiram produzir álbuns originais no mais absoluto segredo (Beyoncé lançou mesmo o seu álbum no iTunes sem que tivesse havido o mais pequeno detalhe de antecipação).
No caso de Madonna, está ainda por surgir o primeiro teledisco de uma canção de Rebel Heart, uma ausência tanto mais insólita quanto a sua expressão musical é indissociável desse meio específico de expressão e promoção. Em termos iconográficos, a aproximação do álbum já começara a ser preparada através de um portfolio publicado na revista Interview, assinado por Mert Alas & Marcus Piggott (a dupla que, em 2012, já realizara as imagens do álbum MDNA). São também eles os autores das fotografias de Rebel Heart, cuja capa representa Madonna a preto e branco, o rosto envolvido numa teia de fios negros a que alguns não deixaram de atribuir um simbolismo muito preciso: o labirinto de circuitos e comunicações em que, através do digital, passou a existir a cultura pop. Resta saber se, para Madonna, essa teia a vai imobilizar ou ajudar a libertar.