Com Birdman, Alejandro González Iñárritu relança as enigmáticas e fascinantes tensões entre viver e representar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Janeiro), com o título 'O palco e a vida'.
Por acção de alguma imprensa (mais ou menos televisiva), está vulgarizada uma visão tecnicista e, em boa verdade, tecnocrática do cinema — a sua inteligência esgota-se na exaltação dos célebres “efeitos especiais”. Desde que haja um qualquer super-herói a correr, de preferência aos berros, por entre um corredor de explosões, essa imprensa está convencida (ou quer convencer-nos) que aí se exprime o máximo de sofisticação técnica que um filme pode alcançar.
Acontece que o cinema pode ser um pouco mais do que uma colecção de cérebros da informática alheados das muitas nuances narrativas que as imagens (e os sons!) podem envolver... O exemplo de Birdman é eloquente. Aqui está um filme que, para gerar um fundamental efeito dramático — a continuidade temporal da acção em torno da troupe teatral a que pertence o actor interpretado por Michael Keaton —, recorre a um requintado aparato de filmagem: há mesmo alguns momentos exuberantes em que a linearidade do tempo é posta à prova por “desvios” visceralmente oníricos.
Ora, o que nos envolve na montanha russa emocional de Birdman não é a contemplação beata da sua complexidade tecnológica, mas sim um dos mais primitivos valores do cinema. A saber: a existência de personagens que, num misto de proximidade e estranheza, nos expõem a infinita complexidade do factor humano. E não deixa de ser sintomático que esta seja uma história sobre a contaminação do palco e da vida, ou melhor, o jogo de espelhos entre a verdade da vida encenada e a frágil encenação da vida vivida. Um frondoso património que envolve cineastas como George Cukor, Jean Renoir ou Max Ophüls ecoa no trabalho de Alejandro González Iñárritu — e só podemos cumprimentá-lo pelo cuidado com que escolheu os seus mestres.