sábado, dezembro 13, 2014

Entre as imagens de Sade

Kate Winslet e Geoffrey Rush
QUILLS (2000)
Sade está de volta... Ou talvez não. No passado dia 2, passaram dois séculos sobre a sua morte — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Dezembro), com o título 'Qual a herança do Marquês de Sade?'.

Apesar da rotina banal em torno das efemérides, os duzentos anos da morte do Marquês de Sade (ocorrida a 2 de Dezembro de 1814) não geraram, entre nós, muitas evocações. Certamente não por acaso, em França, a conjuntura de pensamento é bem diferente, sendo a exposição dedicada ao autor de A Filosofia na Alcova, apresentada pelo Museu d’Orsay (até 25 de Janeiro), um dos acontecimentos mais noticiados e comentados.
Vale a pena ler a entrevista dada pela comissária da exposição, Annie Le Brun, ao jornal Le Monde, começando por justificar o título do evento — “Sade: Atacar o sol” — através da apropriação de uma frase de uma personagem de os 120 Dias de Sodoma. Le Brun tem especial cuidado em separar a escrita de Sade de uma interpretação, afinal piedosa, que o reduz a mero símbolo provocador, “ultraliberal”, face aos usos e costumes de uma determinada época: “Sade sabe como a liberdade é perigosa e o homem soberano inquietante — é um dos raros escritores, talvez o único, a expor a natureza humana a nu. (...) Os seus livros recordam-nos como é frágil o verniz da civilização e de que noite inquietante provêm os nossos desejos.”
Trata-se de resistir a qualquer apropriação de Sade que o inscreva na mais vulgar paisagem “hedonista” que, hoje em dia, é desenhada tanto pela obscenidade pitoresca (do Big Brother televisivo e seus derivados) como pela exaltação pueril das performances sexuais (que contamina muitos discursos publicitários). Trata-se também, mais do que nunca, de questionar a noção simplista segundo a qual seria possível “ilustrar” Sade, reduzindo-o a um sistema de imagens mais ou menos “explícitas”.
Algumas vezes, não muitas, o cinema tentou figurar o Divino Marquês, celebrando o essencial da sua herança. A saber: o radicalismo de uma escrita que, afinal, resiste a passar para o lado da imagem ou, como já o disse Philippe Sollers, que produz (escrevendo) imagens “irredutíveis” a qualquer imagem. Vale a pena recordar dois filmes que partilhavam o mesmo empenho em afastar Sade de qualquer determinismo biográfico: Sade (2000), do francês Benoît Jacquot, e Quills – As Penas do Desejo (2000), do americano Philip Kaufman. Para além das suas diferenças, em ambos os casos a figura do Marquês — interpretado, respectivamente, por Daniel Auteuil e Geoffrey Rush — surgia como criador de uma prosa capaz de confrontar o leitor com os equívocos herdados da concepção do homem como “bom selvagem”. Como diz Annie Le Brun: “Sade obriga-nos a olhar as suas personagens de frente, mostrando-nos que elas nos perturbam e vivem em nós”.
Por mais fora de moda que isso possa parecer (ou, justamente, por causa da sua distância em relação a qualquer moda mediática), a herança de Sade envolve uma consciência metódica da fragilidade intrínseca de qualquer imagem — escrever é também uma arte de dar a ver.