quarta-feira, dezembro 24, 2014

O cinema americano não é a CIA

A representação da América no cinema americano é tudo menos linear e está longe de poder ser reduzida a um discurso panfletário, seja qual for a sua orientação política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Dezembro).

O relatório do comité do Senado dos EUA encarregado de investigar a prática de tortura pela CIA (entre finais de 2001 e o começo de 2009) é um documento dramático e perturbante [New York Times]. Nele se inventariam factos que não podem deixar de suscitar a condenação de qualquer consciência democrática. Na introdução do documento, a senadora Dianne Feinstein, coordenadora da investigação, escreve: “A actual e próximas administrações devem usar este estudo no sentido de orientar futuros programas, corrigir erros do passado, reforçar a supervisão dos relatórios da CIA para os responsáveis políticos e assegurar que práticas coercivas de interrogatório não voltem a ser usadas pelo nosso governo.”
Reconhecer a gravidade de tudo isso não é, no entanto, aceitar que se possa recalcar a monstruosidade do ataque de que os EUA foram alvo no dia 11 de Setembro de 2001. E não será também, num plano vergonhosamente caricatural, entrar na chicana ideológico-mediática que exige que Barack Obama só possa ser encarado a partir de uma dicotomia estúpida: uma encarnação do diabo ou um anjo perdido no negrume da política.
A conjuntura diz muito sobre o lugar tenso da América no imaginário europeu e, em particular, sobre o sistemática simplificação da pluralidade de imagens que dela recebemos. Assim, é comum encontrarmos no espaço televisivo europeu um discurso de demonização automática dos EUA em qualquer cenário político, mesmo quando a nação americana surge como a única democracia activa em determinadas situações internacionais. Ao mesmo tempo, nesse mesmo espaço, os mais medíocres filmes de “super-heróis” que Hollywood tem produzido nos últimos anos (e sabe Deus que não são poucos...) ganham automática evidência noticiosa, recalcando a fascinante diversidade interna da produção cinematográfica americana.
Neste momento de reflexão política enquadrada pelo referido relatório, vale a pena recordar que, pelo menos desde os chamados “filmes liberais” da década de 70 — dirigidos por autores brilhantes como Alan J. Pakula (A Última Testemunha) ou Sydney Pollack (Os 3 Dias do Condor) —, a produção americana tem gerado narrativas que se distinguem, justamente, pela problematização das zonas cinzentas de articulação entre estruturas políticas e serviços secretos.
Mais recentemente, e para além de títulos exemplares de Paul Haggis (No Vale de Elah) ou Kathryn Bigelow (00:30, A Hora Negra), importa não esquecer que o tratamento abusivo de reclusos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque (diversas vezes citado no relatório) está retratado num assombroso filme de Errol Morris, Standard Operating Procedure, lançado em 2008 (entre nós editado apenas em DVD, com o título Operação Padrão). Morris aborda mesmo a questão fulcral das fotografias registadas pelos militares durante rituais de humilhação dos reclusos, recolocando as imagens no centro da reflexão política — somos o que vemos e também a maneira como vemos.