quarta-feira, dezembro 03, 2014

No tempo de "Boyhood" (1/2)

Ellar Coltrane
Boyhood, de Richard Linklater, é um caso raro de sensibilidade na abordagem do crescimento de uma personagem — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Novembro), com o título 'A arte de filmar a passagem do tempo'.

O novo filme de Richard Linklater, Boyhood, surgiu nas salas portuguesas com o subtítulo Momentos de uma Vida. É disso que se trata, sem dúvida: seguimos a existência do pequeno Mason, interpretado pelo magnífico Ellar Coltrane, desde a infância até à entrada na universidade. Em todo o caso, é preciso acrescentar que tais “momentos” não funcionam como meros episódios reveladores das alegrias, silêncios e angústias de um tema que seria, em última instância, a teia emocional da adolescência.
Claro que o filme é sobre isso — e com ressonâncias simbólicas muito actuais. Mas mesmo atraindo uma paradoxal redundância, importa acrescentar que o é de uma forma que só o cinema pode ser. Como? Observando a passagem do tempo através da transformação, ora delicada, ora convulsiva, dos corpos dos actores.
Linklater partiu de um plano de trabalho que envolve, de uma só vez, uma ética e uma estética. Assim, filmou a transformação de Mason através da transformação do próprio Coltrane, durante uma rodagem que decorreu, efectivamente, ao longo de doze anos. O mesmo aconteceu, claro, com os outros actores principais: Patricia Arquette e Ethan Hawke, intérpretes dos pais de Mason, e ainda Lorelei Linklater (filha do realizador) que assume a personagem de Samantha, irmã de Mason, tendo a seu cargo aquele que é, por certo, o mais divertido momento do filme quando, logo na primeira fase da história, com uns oito anitos, irrita o irmão através de uma delirante imitação de Britney Spears, a cantar Oops!... I Did It Again.


A sensação do tempo que passa, suas durações, acidentes e incidentes, está longe de ser estranha ao cinema de Linklater. Também com Ethan Hawke, nesse caso contracenando com Julie Delpy, o realizador construiu um tríptico amargo e doce sobre o envolvimento e as rupturas de um casal: os filmes chamam-se Antes do Amanhecer (1995), Antes do Anoitecer (2004) e Antes da Meia-Noite (2013) e encenam uma relação que evolui desde os protagonistas como jovens adultos até à chegada dos 40 anos.
Expondo o cinema ao espelho do tempo, Boyhood também não é, evidentemente, um caso isolado na história mais geral do cinema. Podemos recordar, por exemplo, a personagem de Antoine Doinel tratada por François Truffaut, até mesmo pelo gosto romanesco (não necessariamente romântico) que Linklater partilha com esse mestre da Nova Vaga francesa. Truffaut começou a filmar Doinel, interpretado pelo inconfundível Jean-Pierre Léaud, precisamente num dos títulos que, em 1959, sinalizou o advento da Nova Vaga: Os 400 Golpes. Depois, foi acompanhando a sua vida fictícia (recheada de pormenores autobiográficos) em vários momentos da sua filmografia, nomeadamente numa longa-metragem sobre a saída da adolescência (Beijos Roubados, 1968), outra sobre o casamento (Domicílio Conjugal, 1970), outra ainda em jeito de balanço familiar e afectivo (Amor em Fuga, 1979).