sexta-feira, novembro 28, 2014

Elogio dos irmãos Dardenne

Jean-Pierre e Luc Dardenne
O que é o realismo? E como é que o realismo convoca o olhar do espectador? O cinema dos irmãos Dardenne continua a possuir respostas fascinantes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Novembro), com o título 'Uma ética que pensa no espectador'.

Seria interessante perguntar porque é que, num ambiente mediático muitas vezes disponível para as mais diversas formas de anti-americanismo primário, existem formas de informação televisiva automaticamente disponíveis para destacar tudo o que é blockbuster de Hollywood? Mais do que isso: nesse mesmo ambiente, regularmente empenhado em celebrar os ideais da nossa querida Europa, porque é que a estreia de um filme como Dois Dias, uma Noite, assinado pelos irmãos belgas Luc e Jean-Pierre Dardenne, é tratada de modo ultra-discreto, à beira do invisível?
Na melhor das hipóteses, tal atitude resultaria de juízos de valor negativos sobre o filme. E digo “na melhor das hipóteses” porque, a acontecer, isso espelharia, pelo menos, alguma forma de convicção. Ora, o problema de fundo é de outra natureza e pode resumir-se na mais triste das palavras: indiferença. Afinal de contas, Dois Dias, uma Noite tem como intérprete principal a francesa Marion Cotillard, por certo a estrela europeia hoje em dia com maior projecção internacional. Mas nem isso é suficiente para que se dê à sua prodigiosa interpretação ao menos o mesmo tempo de antena oferecido a qualquer vedeta imberbe, americana ou europeia, a bater o recorde de banalidades num soundbyte de cinco segundos...
A importância dos Dardenne na história do cinema europeu dos últimos anos (lembremos a sua revelação, em 1996, com A Promessa) pode caracterizar-se a partir de uma fundamental postura ética na relação com o espectador. Marion Cotillard o disse, de forma simples e eloquente, na conferência de imprensa de Dois Dias, uma Noite, no Festival de Cannes (20 Maio): “Quando começámos os ensaios, eles falavam do espectador, o que é muito raro. Em certas rodagens, nem sequer se tem autorização para o evocar. Jean-Pierre e Luc fazem cinema para o espectador — estão empenhados em fazê-lo experimentar coisas vivas.”
Será preciso lembrar que esta vontade de tocar o espectador não tem nada a ver com essa moral rasteira, enraizada na mais demagógica ideologia de marketing, que tenta reduzir qualquer forma de espectáculo aos números das “audiências”? Importa, aliás, sublinhar que o cinema dos Dardenne se fundamenta numa contundência realista que, além de nada ter a ver com o decrépito “naturalismo” televisivo, mantém uma aguda actualidade social e política.
O caso de Dois Dias, uma Noite é, uma vez mais, modelar. A história da mulher (Cotillard) que tenta salvar o seu emprego através de um angustiado apelo de solidariedade aos colegas não é uma banal ficção “sindical”: compreendemos que a sua acção, apesar de intensamente política (ou precisamente por causa disso...), escapa a qualquer rótulo político-partidário. Nesta perspectiva, os Dardenne são sobreviventes do mais genuíno humanismo clássico, valor todos os dias menosprezado no nosso espaço mediático.