quarta-feira, novembro 05, 2014

Desastres do desporto em directo

Como é que as televisões lidam com os directos do desporto? Na maior parte dos casos, através de um determinismo grosseiro que menospreza a própria pluralidade dos eventos — esta crónica de televisão foi publicado na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (31 Outubro), com o título 'Desporto em directo'.

1. Nos minutos de compensação da primeira parte do West Ham – Manchester City (Benfica TV), os visitantes, a perder por 1-0, estão à beira de empatar. O comentador refere que os citizens quase conseguiram, “injustificadamente”, marcar um golo... Como? Assim se dispensa qualquer relação de disponibilidade com a pluralidade imprevisível do real. Não é um problema banalmente futebolístico, entenda-se, antes uma questão de postura filosófica face à diversidade da nossa percepção (por exemplo, através de um ecrã de televisão). Quase ninguém tem gosto em olhar para o que quer que seja — a televisão é vivida e representada como um dispositivo legal (em nome de que lei?...), vocacionado para “forçar” o real a obedecer aos desígnios daqueles que se proclamam agentes de uma justiça pueril e arbitrária. No fim do jogo, ficamos ainda a saber que o West Ham não deu “veleidades” ao City, confirmando-se que o futebol televisivo passou a promover um novo e patético dicionário de português.

2. Os directos desportivos são, apesar de tudo, das poucas coisas genuínas que a televisão preserva. O futebol ou o ténis, por exemplo, não podem ser esvaziados de uma saborosa margem de imprevisibilidade. Por milagre, o ténis é mesmo das poucas actividades humanas (desportivas ou não) cujos momentos vitais a televisão dá a ver sem lhes sobrepor uma lengalenga de redundâncias em off. No pólo oposto, a Fórmula 1 tornou-se a avalancha do gratuito. Os pontos de vista das muitas câmaras utilizadas mudam constantemente e o ecrã está cheio de nomes e números — o certo é que os comentadores, além de menosprezarem o valor de algum silêncio no interior dos directos, passam o tempo a debitar mais nomes e mais números (ou a recordar o despiste que ocorreu na sétima curva de uma prova disputada há trinta anos, três meses e 27 dias...), porventura acreditando que a avalancha de “informação” é uma forma superior de conhecimento. Será que nunca pensaram no efeito irrisório daquilo que dizem?