quarta-feira, novembro 19, 2014

As crianças de Bergman

Bertil Guve, FANNY E ALEXANDRE (1982)
Como é que, maioritariamente, a televisão contemporânea representa as crianças?... Digamos que, para nos consolarmos, devemos evocar o génio de Bergman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Novembro), com o título 'As crianças muito vivas de Ingmar Bergman'.

Ao longo dos tempos, as mais poderosas linguagens televisivas impuseram modelos de representação das crianças que oscilam entre duas formas de grosseria: em alguns casos, a infância é tratada como uma paisagem que se esgota em disparates mais ou menos pitorescos; noutros, os mais novos não existem, quer no plano social, quer no espaço familiar, a não ser como vítimas potenciais de todas as entidades malignas deste mundo e do outro.
Essas perversas formas de infantilização têm vindo a ser transferidas para o espaço dos adultos — na prática, vemos (e ouvimos!) o modo condescendente e paternalista com que algumas personalidades televisivas se dirigem a nós, espectadores adultos, e não podemos deixar de pensar que, na melhor das hipóteses, nos consideram tristíssimos patetas alegres.
É uma questão de ética da comunicação, sem dúvida — o modo como transmitimos o que quer que seja envolve sempre alguma forma de representação do nosso interlocutor. Mas é também uma questão fulcral do mundo contemporâneo das imagens em que, de uma maneira ou de outra, por razões (sociais e simbólicas) muito diversificadas, “infância” e “juventude” são categorias sistematicamente investidas pelos circuitos de informação, jornalísticos ou não, que nos envolvem.
Os mais disponíveis para lidar com estas questões terão (re)descoberto no lançamento de 17 filmes do mestre sueco Ingmar Bergman — primeiro em sala e, actualmente, em sucessivas edições em DVD — uma visão tão contagiante quanto actual. Na verdade, sendo um dos cineastas que mais longe conduziu a discussão moderna do poder figurativo das imagens, seu alcance e limites, Bergman teve sempre a infância presente no seu cinema, quanto mais não seja através de um tema contundente e doloroso: a infinita dificuldade de ser (ou não ser) adulto.
O exemplo de Fanny e Alexandre (1982) constitui uma referência modelar. O próprio Bergman reconhecia que esta saga de uma família do começo do séc. XX, centrada em dois irmãos — interpretados pelos maravilhosos Bertil Guve (Alexandre) e Pernilla Allwin (Fanny) —, era qualquer coisa de tão sentido e tão íntimo que, mesmo lidando com personagens de ficção, constituía um dos objectos mais genuinamente autobiográficos da sua filmografia.
Fanny e Alexandre envolve, assim, um dos mais clássicos temas infantis: a descoberta, entre desencanto e medo, das falsidades sustentadas pelas relações dos adultos. Em todo o caso, importa acrescentar que, encenado por Bergman, esse não é um tema que desemboque em qualquer determinismo moralista. E por uma razão de peso: é que, para todos os humanos, independentemente da respectiva idade ou geração, o ponto de fuga temático é sempre a nitidez indizível da morte. Que Fanny e Alexandre sejam personagens sem nada de fúnebre, mas com uma contagiante energia vital, eis o que atesta o génio intemporal de Bergman.