quarta-feira, novembro 05, 2014

A televisão segundo Soderbergh

Com a notável série The Knick, Steven Soderbergh confirma que o seu talento transcende qualquer fronteira convencional entre cinema e televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Outubro).

Sabemos que a história de cinema e televisão está enredada há várias décadas. Em boa verdade, desde que, em meados dos anos 50, os estúdios de Hollywood começaram a lançar os grandes formatos (CinemaScope, 70 mm, etc.), com a monumentalidade das imagens a tentar combater um incontornável dado social e económico: o cidadão comum passou a ficar cada vez mais tempo em casa, face ao pequeno ecrã.
No caso de Steven Soderbergh, cinema e televisão têm sido variantes complementares, dir-se-ia intermutáveis, de uma trajectória criativa de muitas e fascinantes singularidades. A sua mais recente série televisiva — The Knick (a passar no canal TV Séries) — é um exemplo admirável de uma lógica que começa numa surpreendente versatilidade. Repare-se, assim, na ficha de The Knick, mais concretamente nos nomes responsáveis pela fotografia e montagem, respectivamente Peter Andrews e Mary Ann Bernard. Quem são tão brilhantes profissionais que, convém lembrar, pontuam a maioria dos títulos da filmografia do autor? Pois bem, apenas nomes “alternativos” do próprio Soderbergh.
Steven Soderbergh
(FOTO: Berlinale)
The Knick é o retrato ficcionado do Knickerbocker Hospital, em Nova Iorque, no começo do séc. XX. A personagem central, John Thackery (Clive Owen), colhe alguma inspiração na figura de William Stewart Halsted (1852-1922), médico pioneiro na utilização de anestésicos em cirurgia. De qualquer modo, Soderbergh não procura concretizar uma mera derivação das séries “históricas” em que, desde a psicologia individual aos valores sociais, tudo se apresenta recoberto por um determinismo redutor. O que ele encena é uma conjuntura em que o entendimento do próprio corpo humano sofre dramáticas evoluções.
O trabalho dos médicos do Knickerbocker enraíza-se numa dinâmica, a um tempo social e simbólica, plena de contradições: por um lado, o recurso a novas drogas e instrumentos cirúrgicos vai alterando por completo o tratamento de várias doenças e, no limite, a própria percepção da dor; por outro lado, as divisões da sociedade contaminam o trabalho dos médicos — observe-se a importância decisiva da personagem de Algernon Edwards (André Holland), o médico negro que enfrenta uma perversa marginalização no interior da hierarquia do próprio hospital.
De forma sugestiva, podemos considerar que The Knick prolonga a cronologia de dois filmes de Martin Scorsese, Gangs de Nova Iorque (2002) e A Idade da Inocência (1993), ambos situados na segunda metade do séc. XIX, expondo as tensões da gestação da grande metrópole — o primeiro através de uma evocação da luta pelo controle das ruas; o segundo reavivando os restos nostálgicos do romantismo. Com The Knick, Soderbergh acrescenta um novo e notável capítulo a uma visão de Nova Iorque em que, em última instância, se vislumbram as diferenças entre a utopia colectiva do Sonho Americano e o desencanto das experiências individuais.