terça-feira, outubro 07, 2014

Uma noite com Morrissey em Lisboa

Foto: DN
Publiquei hoje no DN um texto sobre o concerto que Morrissey levou ao Coliseu dos Recreios, em noite de abertura de uma nova digressão europeia na qual a expressão nostalgia não parece morar entre as preocupações do músico. E ainda bem...

Ali conto que:

"De fato branco - e quase fazia lembrar a silhueta de um Elvis em finais dos sessentas quando entrou em palco - e vocalmente seguro (houve apenas um engano mais evidente, coisa típica de arranque de digressão), Morrisey não junta ao palco nem tiradas espirituosas nem grandes discursos. Foi poucas vezes para lá do "obrigado" (ou "gracias" noutras duas ocasiões), sublinhou um "porque tem de ser" quando evocou "Hand in Glove" dos Smiths e não gastou muito do seu latim em conversas com a plateia. O que não fez contudo da sua passagem por Lisboa uma presença muda além do canto. Pelo contrário, as imagens de touradas que passaram pelo ecrã que escondia o palco antes do início da atuação, a sequência de imagens de violência e maus tratos sobre animais que acompanharam o poderoso Meat is Murder ou novamente as touradas no mais recente The Bullfighter Dies (e talvez valha a pena refletir sobre até que ponto foi ou não igualmente violenta a sua exposição) e as representações jocosas da família real britânica que exibiu duas vezes - uma delas sob a legenda "United King-dumb" - deram à passagem de Morrissey pelo palco lisboeta uma dimensão política que não passou despercebida a ninguém.

Não foram muitos os singles revisitados e contaram-se ao todo nove os temas do novo disco (um deles um extra da edição especial em CD) no alinhamento de 19 canções que trouxe a Lisboa. Não é propriamente uma aritmética para consumidores de nostalgia nem cultores de uma visão de uma obra na perspetiva da "fama" (leia-se os êxitos). Mas a verdade é que, no fim, eram sorridentes e satisfeitos os rostos que saíam do Coliseu, minutos depois de um festivo First of The Gang que fechou o encore. Morrissey mostrou como carisma, personalidade e uma obra ainda viva são argumentos bem mais entusiasmantes para partilhar num serão frente a uma plateia que os desfiles de clássicos de outros tempos que tantos outros da sua geração apresentam por aí."

Podem ler aqui o texto completo.

Ontem, também no DN, apresentei um texto de antecipação sobre o regresso de Morrissey a Portugal. O texto foi publicado com o título 'Entre memórias e canções vamos aprendendo a conhecer Morrissey'.

Alguém que nos conta que a sua infância foram “ruas sobre ruas sobre ruas”, falando de “ruas que nos definem e ruas que nos confinam” é alguém com a alma (e o talento) de um grande escritor. Estas são porém palavras escritas e já publicadas de um músico. E ele é, contudo, mais do que apenas um músico. É um dos mais inspirados, demarcados e importantes autores dos últimos 30 anos, em tempos tendo criado com o guitarrista Johnny Marr um par criativo do calibre de duplas como as que juntaram Lennon com McCartney ou Jagger com Richards. Ele chama-se Morrissey. E após longa ausência está de regresso a Portugal para o arranque da fase europeia de uma digressão que foi atribulada na sua etapa norte-americana (que viu parte dos concertos serem cancelados na sequência de uma infeção pulmonar que impediu o músico de subir ao palco durante algum tempo).

Durante anos foi pelas canções que o tentámos conhecer. E dele, tal como de tantos outros que fazem da escrita de canções a sua principal “voz”, fomos somando referências, retratos, vivências, sugestões, por vezes suposições mais as inevitáveis dúvidas. É assim a escrita de canções, mesmo quando alicerçada no real e cruzando ecos factuais: uma construção de pequenas ficções, muitas vezes com uma personagem (real ou criada) como protagonista. Há pouco mais de um ano, Morrissey decidiu contudo juntar outras palavras à sua escrita. E numa autobiografia a que chamou, simplesmente, ‘Autobiography’ (e que em breve terá tradução para português publicada em livro pela Marcador), deu-nos um retrato de si mesmo pelo seu prisma e suas frases. Tudo mudou a partir desse momento. E o homem que vamos reencontrar no palco do Coliseu dos Recreios é, sendo o mesmo, alguém que talvez agora possamos conhecer (leia-se “compreender”) um pouco melhor.

Musicalmente temperado com a algo inesperada presença de alguns elementos da cultura latina, o mais recente disco ‘World Peace Is None of Your Business’ (editado este ano) foi o seu primeiro conjunto de inéditos gravados depois da edição do livro e, por isso mesmo, um disco escutado na posse de novos dados. O álbum, que o próprio Morrissey mandou retirar das lojas na sequência de um desentendimento com o que criticou ter sido um mau trabalho promocional da editora (tendo entretanto já prometido nova edição em nova etiqueta), traduz uma saudável inquietude de quem não deseja cristalizar nas suas referências mais “clássicas” e ensaia ligações a novas geografias musicais, ao mesmo tempo que aprofunda um sentido de cenografia sonoplasta (que não é, todavia, estreia absoluta na sua discografia). Se musicalmente o disco gerou surpresa – inevitavelmente dividindo opiniões –, tematicamente acrescenta à sua obra um novo conjunto coerente de imagens e reflexões. Aos 55 anos fala-nos de Allen Ginsberg, de modelos de masculinidade e dos direitos dos animais, fechando o alinhamento com um ‘Oboe Concerto’ em que olha de frente o envelhecimento, reparando que uma geração mais velha já partiu e que ele mesmo começa a tomar o seu lugar numa fila de espera.

Nos concertos da etapa norte-americana da presente digressão Morrissey levou a palco canções dos tempos dos The Smiths. Em Boston, por exemplo, cantou ‘The Queen Is Dead’, ‘Asleep’ e ‘Meat Is Murder’. Em Miami cantou também ‘How Soon Is Now’ e ‘Hand in Glove’. E entre estas memórias tem garantido a evocação da parceria criativa com o guitarrista que, quando o conheceu (estando “imaculadamente penteado”), a primeira coisa que lhe terá dito era que tinha “uma voz estranha”, como recorda na sua autobiografia. Nessas mesmas páginas Morrissey comenta inclusivamente as aptidões naturais do velho parceiro de trabalho e questiona porque é que, entre tantos outros possíveis colaboradores em Manchester, teria acabado junto de alguém tão “amedrontado e complicado” como ele mesmo...

A verdade é que, a bordo dos The Smiths, Morrissey viria não apenas a assinar uma obra que reativou a presença das guitarras no mapa das atenções da música pop/rock inglesa de então, como se transformou, pelas características únicas da sua voz, palavras e atitude, num dos maiores ícones que a cultura “alternativa” viu nascer nos anos 80. Foram poucos discos (apenas quatro álbuns de originais e um conjunto mais extenso de singles), mas todos eles marcantes, raras sendo as listas de títulos fundamentais dos oitentas em que não figurem uma ou mais entradas dos The Smiths. O desmembramento do quarteto, em 1987, abriu espaço a uma carreira a solo de Morrissey que, com melhores e piores momentos, acrescentou à sua obra em disco pérolas maiores como ‘Viva Hate!’ (1988), ‘Vauxhall and I’ (1994) ou ‘You Are the Quarry’ (2004). O novo disco juntou este ano um novo episódio a um corpo criativo que, agora, partilha atenções com os livros (falou-se já de uma estreia como romancista para breve, como avançou o The Guardian em janeiro). Em palco, porém, as canções serão novamente as protagonistas.