sexta-feira, outubro 17, 2014

Quando a diferença assusta


A venezuelana Mariana Rondón apresenta em ‘Cabelo Rebelde’ (‘Pelo Malo’ no original) a história de uma jovem mãe preconceituosa que teme que o filho possa ser diferente. O filme está já em exibição entre nós. Este texto foi originalmente publicado no DN com o título 'Nem o cabelo é mau nem a diferença devia assustar'.

O cinema sul-americano (sobretudo o argentino) tem-nos apresentado nos últimos anos um expressivo (e muito recomendável) conjunto de reflexões sobre as temáticas da descoberta da sexualidade e da identidade de género. Filmes como XXY de Lucía Puenzo, O Último Verão da Boyita de Julia Solomonoff, Glue de Alexis dos Santos ou os mais recentes Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro, e Atlântida, de Inés Maria Barrionuevo (ambos exibidos na edição deste ano do festival Queer Lisboa) são claros exemplos de um cinema que tem pegado nestes temas de caras neles encontrando histórias, personagens e visões que definem já um corpo sólido que tem conhecido representação à escala global sobretudo através do circuito dos festivais. Cabelo Rebelde, da venezuelana Mariana Rondón, que esta semana chegou aos ecrãs portugueses (depois da antestreia no Leffest em 2013), é mais um título a juntar a esta lista e, tal como sucedeu com o filme da argentina Julia Solomonoff, um dos raros exemplos destas cinematografias a conhecer estreia comercial em sala entre nós.

O “cabelo rebelde” de que aqui se fala (uma tradução mais literal do título original Pelo Malo diria qualquer coisa como “cabelo mau”) é, por um lado, o cabelo de facto muito encaracolado do jovem protagonista, um menino que sonha poder tirar uma foto em pose de cantor e com o cabelo liso. Por outro, representa uma expressão do medo da diferença, que encaramos através de uma mãe, dominada por preconceitos, que vive o que toma como possíveis primeiras manifestações de homossexualidade do filho. Contudo, mais que fazer mais um ‘coming of age’ ou traçar um mero quadro de descoberta da sexualidade, o que a realizadora Mariana Rondón procura em ‘Cabelo Rebelde’ não é mais que o jogar com os preconceitos enraizados na sociedade e o temor que tantas vezes levanta o enfrentar do que não é normativo para, afinal, falar sobre o que assusta os que receiam quem é diferente.

O filme toma por protagonista o pequeno Júnior (Samuel Lange Zambrano), o mais velho dos dois filhos de uma profissional de segurança que perdeu o marido e o emprego. Júnior diverte-se com uma vizinha procurando personagens entre a multidão de janelas e varandas do decrépito bloco de apartamentos em frente àquele – em igual estado de degradação – onde ambos vivem. Não gosta do cabelo, que imaginamos herdado do pai, e não perde oportunidades para, com maionese ou óleo (ou o que mais lhe digam que resulta), tentar alisar os caracóis. O dia em que a mãe o vê a dançar de forma bem diferente dos outros meninos desperta primeiros receios que a chegam a levar ao médico, tentando saber até mesmo se há culpa sua no facto de o filho poder ser diferente... Atitude oposta à da sua sogra, que alimenta os sonhos do neto, que ela mesma gostaria de criar. 

Procurando através da câmara um sentido de realismo, que os cenários de um bairro decadente e as vidas assombradas pelo desemprego ilustram, Cabelo Rebelde é assim ao mesmo tempo um retrato do lado menos propagandístico da Venezuela da era Chavez e uma reflexão sobre como o medo e o preconceito são afinal quem mais mal lida com a diferença.