Espantoso actor: Michael Fassbender está sempre in character, mesmo quando tem o rosto escondido por uma cabeça de cartão — este texto integrava um dossier sobre o filme Frank, publicado no Diário de Notícias (12 Outubro).
Por vezes, há filmes impossíveis de encaixar em qualquer modelo, moda ou tendência. Dir-se-ia que são objectos que inventam o seu próprio género e, de alguma maneira, o sistematizam, exploram e esgotam. Frank, uma realização do irlandês Lenny Abrahamson, é um desses filmes. De tal modo que não há maneira de o “explicar”, a não ser começando pela informação mais cândida e desconcertante: esta é a história de um cantor e compositor de uma banda rock que usa uma cabeça falsa, de cartão pintado... Não, não é um mero adereço mais ou menos bizarro para as performances ao vivo: Frank usa a sua cabeça postiça... sempre!
Não estamos, no entanto, perante uma aventura que tenha lugar numa paisagem mais ou menos alternativa, numa galáxia distante. Nada disso: Frank é uma história dos nossos dias, sobre um grupo de músicos que, não só procura reconhecimento, como tem uma presença significativa no YouTube e no Twitter. Mais do que isso: o argumento do filme parte de uma experiência verídica, contada por um dos seus protagonistas.
Entramos, assim, no território de Frank através de Jon Burroughs (Domhnall Gleeson), um jovem empregado de escritório que, esforçando-se por compor as suas canções (sem grandes resultados...), vive o sonho de pertencer a uma verdadeira banda rock. Um dia, um acaso mais ou menos burlesco, vai colocar Jon como teclista de um grupo bizarro, The Soronprfbs, que se (des)organizam em torno do seu enigmático vocalista e compositor: Frank, o homem da cabeça de cartão.
Na origem de tudo isto, está a experiência muito verídica de Jon Ronson, jornalista galês (nascido em Cardiff, em 1967) que, na segunda metade dos anos 80, acompanhou durante algum tempo a banda de Frank Sidebottom, alter-ego do músico inglês Chris Sievey (1955-2010), que se apresentava em palco usando uma cabeça postiça. O próprio Ronson escreveu o argumento de Frank, em colaboração com Peter Straughan, assumindo-o como uma “recriação” transposta para o nosso séc. XXI, embora conservando algumas singularidades do seu mentor musical. Como ele escreve no seu site, “não é uma biografia, é uma ficção”. A verdadeira história está contada no livro, que ele também escreveu, Frank: The True Story that Inspired the Movie.
Para Lenny Abrahamson, não se tratava apenas de dar conta da estranheza de Frank, mas também de explorar as nuances que marcam as suas relações com os outros elementos da banda e, em particular, com Jon. Personagens como Don (Scoot McNairy), o angustiado “manager” da banda, ou Clara (Maggie Gyllenhaal), vivendo uma espécie de conflituoso romance com Frank, são figuras de um universo em que as fronteiras entre “normal” e “anormal” deixam de existir para, em última instância, darem lugar a um misto de desamparo e poética ansiedade que tem a sua expressão mais cristalina na solidão do próprio Frank.
Escusado será dizer que Frank envolve um desafio muito especial para Michael Fassbender enquanto intérprete de Frank, porventura ainda mais radical que alguns que têm marcado a sua carreira — lembremos apenas a sua interpretação de um viciado no sexo, no filme Vergonha (2011), de Steve McQueen. No essencial, Fassbender tem de transmitir os estados de alma da sua personagem através das subtilezas da voz e também de uma elaborada linguagem corporal. Se ele vai ou não mostrar o seu rosto, eis uma interrogação que envolve algum “suspense” afectivo. Afinal de contas, podemos mesmo perguntar se Frank é mais ou menos verdadeiro quando esconde o seu rosto.