quarta-feira, outubro 01, 2014

O regresso ao mono dos Beatles (parte 1)

Este texto é parte de um artigo originalmente publicado no suplemento Q., do DN, com o título 'Em busca de autenticidade na memória dos Beatles' e apresenta a caixa que junta, em novas edições em vinil, a obra em ‘mono’ que o grupo registou entre 1962 e 1969.
O exercício da memória tem os seus caprichos (e justificações). E contra a massificação de uma memória de dieta, que é tantas vezes veiculada por modelos greatest hits que reduzem o que outrora aconteceu apenas a excertos das obras dos que ultrapassaram as mais altas fasquias da popularidade (quantas vezes confinando a uma ou uma escassa mão-cheia de canções todo um percurso criativo), há quem procure, sob uma outra lógica, uma busca de um mais rigoroso sentido de verdade que a música de outros tempos em si guarda, para que a possamos reencontrar tal e qual a descobriram os ouvidos de quem a escutou à nascença. Na música clássica ganhou fôlego – sobretudo nos anos 90 – uma forma de entender o reencontro com obras de um passado mais remoto (sobretudo nos repertórios barroco e clássico) através de estratégias “de época”, visando muitas vezes não apenas uma utilização de instrumentos da altura, mas também formações de músicos distintas das atuais e até mesmo optando por modelos de direção de orquestra decorrentes de um ponto de vista definido pelo estudo histórico das obras, dos compositores e do seu tempo. A história da música popular conta-se com menos calendários no arquivo, muita da que falamos datando mesmo de um tempo em que as gravações registaram retratos fiéis (segundo a tecnologia disponível, é certo) das épocas em que essas obras surgiram. A evolução da tecnologia ao serviço do som mudou contudo a forma de ouvir música. E obras que foram registadas há 50 anos chegam hoje até nós em suportes que não eram sequer imaginados então. Uma nova caixa dos Beatles pode assim representar uma importante contribuição para a definição definitiva de um novo paradigma na forma de entendermos a música gravada antes da generalização da gravação estereofónica e a liberalização do acesso do grande público a sistemas de alta fidelidade.

As primeiras canções dos Beatles surgiram em disco há pouco mais de 50 anos e a forma como então chegavam às casas de quem as escutava era completamente diferente. A gravação em “mono” (ou seja, monofónica, concentrando o som num único ponto) era – apesar do estéreo ser então há já muito conhecido – o paradigma vigente, não apenas para quem ouvia discos, mas também quem escutava rádio ou via televisão. Um único altifalante, em todos esses aparelhos caseiros, era a fonte de som. E a mistura dos elementos sonoros era pensada então para assim ser arrumada.

Os temas dos Beatles conheceram edição simultânea com misturas em mono e estéreo desde o início da sua discografia, as primeiras sendo então as que correspondiam às maiores solicitações do mercado – era assim a esmagadora maioria dos gira-discos da altura – e, de resto, até aos dias de St. Pepper’s, a mistura em mono era a prioridade maior para os fab four, muitas das misturas em estéreo para os seus discos de então tendo sido feitas muitas vezes praticamente sem a sua presença. Se nos EUA a Capitol (que editava localmente os Beatles) deixou de apostar no mono a partir de 1968 (o que corresponde ao álbum The Beatles, muitas vezes referido como o “álbum branco”), no Reino Unido semelhante política chegou em 1969, o que, na obra do grupo, fez dos álbuns Abbey Road (1969) e Let It Be (1970) peças exclusivamente misturadas em estéreo.

A progressiva transferência da audição de música gravada para aparelhagens estereofónicas – dos sistemas de alta-fidelidade aos pequenos leitores portáteis de cassetes que surgiriam no final dos anos 70 – foi deixando as velhas edições em mono sair de catálogo. As novas reedições em vinil partiam assim das versões em estéreo, o mesmo acontecendo com a chegada do CD, apesar de George Martin ter, no caso dos Beatles, insistido que as versões em Compact Disc dos álbuns Please Please Me, With the Beatles, A Hard Day’s Night e Beatles for Sale deveriam ser feitas a partir dos masters em mono.

Mesmo assim, e com o tempo, aquelas que tinham representado as misturas às quais os próprios Beatles tinham dedicado as suas maiores atenções tinham acabado arredadas do mercado. Eram coisa para colecionadores, que disputavam as velhas cópias originais dos álbuns em vinil. Tudo mudou contudo em 2009. Na sequência de uma profunda campanha de trabalhos sobre os masters originais do arquivo dos Beatles feita por técnicos dos estúdios Abbey Road – onde a esmagadora maioria das gravações do grupo foram feitas – o acervo em mono acabou por revelar memórias esquecidas e, ouvidas as diferenças, inúmeros pontos de vista diferentes que as mais novas gerações desconheciam.

Ao mesmo tempo que era preparada uma remasterização, o mais fiel possível dos originais, da discografia em estéreo – que entretanto se tornara o cânone para a obra dos Beatles –, os técnicos de Abbey Road trataram de igual forma os masters das edições em mono. E ao mercado chegaram também assim (nessa fase apenas em CD) as versões em mono que, mesmo essencialmente dedicadas a colecionadores e admiradores mais dedicados ao conhecimento profundo da obra do grupo, acabaram por abrir um precedente que, entretanto, deu frutos. À caixa de CD The Beatles in Mono seguiram-se The Original Mono Recordings de Bob Dylan (caixa de 2010 com registos entre 1962 e 67) ou The Kinks in Mono (caixa de 2011, em edição limitada, com os álbuns que o grupo lançou entre 1964 e 69). Agora, cinco anos depois dessa edição que semeou um desejo de reencontro de verdades que a era do estéreo esquecera, uma nova caixa dos Beatles aproxima ainda mais do presente a experiência de um reencontro de facto com as memórias originais destes discos em mono, apresentando-os em vinil.

(continua)