terça-feira, outubro 07, 2014

David Fincher, aqui e agora (2/2)

Gillian Flynn adaptou o seu romance Em Parte Incerta/Gone Girl para uma realização de David Fincher. Os resultados devolvem ao thriller a sua sofisticação clássica — este texto integrava um dossier sobre o filme, publicado no Diário de Notícias (2 Outubro), com o título 'O que é uma história de amor?'.

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Num dos mais belos inícios de filme que vimos em tempos recentes, a cabeça deitada de Rosamund Pike enche o ecrã, ao mesmo tempo que a mão de Ben Affleck lhe toca nos cabelos, levando-a a virar-se para trás... A voz off introduz uma imediata sensação de ambiguidade e incerteza, de algum modo sublinhada pelo olhar: a mulher corresponde à carícia ou tem medo daquela mão que convoca o seu desejo?
Em Parte Incerta é uma antologia de prodigiosos instantes como este. As muitas especulações em torno da maior ou menor “coincidência” da realização de David Fincher com o romance de Gillian Flynn, sendo compreensíveis, tendem a passar ao lado do essencial: ao procurar o esclarecimento de um mistério policial (que é feito da “gone girl” a que se refere o título original?), Fincher não filma exactamente o sentido das coisas, mas sim a tragédia íntima dos gestos e das relações em que as coisas deixam de fazer sentido — ou já não cabem no sentido (conjugal, social, simbólico) que lhes foi destinado.
Solicita-se, por isso, aos demagogos que proclamam que a denúncia do populismo televisivo não passa de uma “preocupação” de alguns intelectuais empedernidos que vejam e revejam este prodigioso filme. Fincher mostra a desvergonha com que algumas formas de televisão dos nossos dias exploram as vidas privadas e, mais do que isso, sujeitam a infinita complexidade do real ao espartilho de um violento moralismo. Em Parte Incerta não é, por isso, um vulgar enigma policial (“quem, como, onde”), mas sim uma inquietante viagem pelo enigma mais radical. A saber: o modo como a mais transparente relação humana pode ser habitada pelos mais inconfessáveis fantasmas. Se se trata ou não de uma história de amor, eis a pergunta a que o espectador deve responder por sua conta e risco.