terça-feira, outubro 21, 2014

Alain Resnais vai ao teatro (2/2)

Sabine Azéma, Pierre Arditi e Alain Resnais
— rodagem de VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA
Os dois títulos finais de Alain Resnais chegaram, em simultâneo, às salas portuguesas: é um dos grandes acontecimentos cinematográficos do ano — este texto integrava um dossier sobre essas estreias, publicado no Diário de Notícias (10 Outubro).

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Uma frase dos diálogos da primeira longa-metragem de Alain Resnais, Hiroshima, Meu Amor (1959), com argumento de Marguerite Duras, entrou para a galeria das mais lendárias falas cinematográficas: “Tu não viste nada em Hiroshima”. Nela ecoam os limites de qualquer olhar sobre as ruínas da bomba atómica em Hiroshima. Dito de outro modo: Resnais trabalhou sobre a pulsão de ver e a cruel insuficiência do olhar.
Que o penúltimo dos seus filmes se apresente através do delicioso título Vocês Ainda Não Viram Nada, eis uma irrecusável ironia. Ao que parece, a frase serviu várias vezes ao próprio Resnais para brincar com o seu produtor, Jean-Louis Livi, cada vez que chegavam ao visionamento da cópia final de um determinado projecto. Seja como for, ele tinha a consciência muito aguda de que o cinema, arte do visível, por excelência, vive através do défice do acto de ver.
Eis uma noção não muito popular nestes tempos de uma pueril “transparência” televisiva tecida de imagens “em tempo real” (uma imagem não transmitida em directo remete-nos, então, para um tempo irreal?...). De facto, Resnais, nunca ignorou o poder paradoxal, porventura contraditório, do próprio cinema. Ele é, afinal, o autor do emblemático Noite e Nevoeiro (1955), filme em que as memórias de Auschwitz emergem desse território terrível em que a necessidade (política) de mostrar o horror está marcada pelos limites (factuais) do que é possível ver.
Com Vocês Ainda não Viram Nada e Amar, Beber e Cantar deparamos com dois filmes que conservam a alegria e o sentido de risco de alguém que nunca pactuou com as ilusões mais correntes da sociedade mediática. Resnais foi um criador genial que conduziu o cinema às fronteiras do seu próprio silêncio, quer dizer, à atracção sem nome do invisível.