Os dois títulos finais de Alain Resnais chegaram, em simultâneo, às salas portuguesas: é um dos grandes acontecimentos cinematográficos do ano — este texto integrava um dossier sobre essas estreias, publicado no Diário de Notícias (10 Outubro).
Alain Resnais, nome fundamental da Nova Vaga francesa, faleceu no passado dia 1 de Março, contava 91 anos. O seu derradeiro filme, Amar, Beber e Cantar chegou às salas francesas poucas semanas mais tarde, a 26 de Março — quer isto dizer que Resnais trabalhou até final, deixando uma obra em que o gosto experimental se combina sempre com a alegria criativa.
Agora, justamente, o mercado português oferece-nos a possibilidade de descoberta do período final de Resnais, com a estreia simultânea de Vocês Ainda Não Viram Nada, o penúltimo dos seus títulos, datado de 2012, e Amar, Beber e Cantar. O mínimo que se pode dizer é que se trata de uma oportunidade especial de (re)encontro com as singularidades de um autor que, desde as primeiras longa-metragens — Hiroshima, Meu Amor (1959) e O Último Ano em Marienbad (1961) — desafiou cânones e abriu os nossos olhares para novas paisagens expressivas.
Tal como diversos títulos da última fase da sua carreira, a começar pelo díptico Fumar/Não Fumar (1993), ambos os filmes se inspiram em textos teatrais. Dir-se-ia que, em determinado momento, Resnais decidiu apostar em questionar o cinema através do teatro. Aliás, Alan Ayckbourn, o autor inglês da peça Intimate Exchanges, na origem de Fumar/Não Fumar, é o mesmo que escreveu Life of Riley, adaptada em Amar, Beber e Cantar. Quanto a Vocês Ainda Não Viram Nada, é o teatro de Jean Anouilh que lhe serve de inspiração, mais concretamente através dos textos de Eurídice e Cher Antoine ou l’Amour Raté.
Ambos os filmes definem um discreto testamento cinematográfico. Resnais nunca foi um criador que reivindicasse uma dimensão confessional, mas é um facto que estes dois títulos, socorrendo-se dos artifícios do teatro, deixam uma visão, a um tempo pedagógica e sarcástica, da própria condição autoral. Mais do que isso: tanto num como noutro, a presença da morte é um dado de poética ambivalência.
Vocês Ainda Não Viram Nada envolve um insólito trabalho de luto, já que a figura central, interpretada por Denis Podalydès, é um encenador de teatro, já falecido, que deixou um invulgar legado: um filme em que solicita a um grupo de actores, com que trabalhou ao longo dos anos, uma avaliação da sua encenação da Eurídice, de Anouilh (o filme dentro do filme foi registado por Bruno Podaydès, irmão de Denis, com jovens intérpretes do grupo La Compagnie de la Colombe). Perante tal filme, os actores — que Resnais identifica pelos nomes verdadeiros: Sabine Azéma, Pierre Arditi, Michel Piccoli, etc. —submetem-se a um verdadeiro jogo de espelhos em que todas as diferenças entre a vida representada e a vivida vacilam de forma irónica, por vezes cruel.
O caso de Amar, Beber e Cantar tem qualquer coisa de genuína farsa, já que as personagens estão envolvidas na preparação de uma peça com o enigmático Riley (citado no título de Ayckbourn) que, em boa verdade, só vai estando presente através daquilo que os outros dizem sobre ele... A ponto de a doença que o afecta pairar como um fantasma quase burlesco.
Com Vocês Ainda Não Viram Nada e Amar, Beber e Cantar, Resnais concluiu sob o signo do teatro uma obra cinematográfica que se desenvolveu ao longo de cerca de sete décadas. A sua vitalidade é inseparável de uma continuada atenção a outras linguagens artísticas, desde a pintura (lembremos a curta-metragem Guernica, de 1950, sobre o quadro de Picasso) até à música (Nos Lábios Não, de 2003, adapta uma opereta do começo do séc. XX). Para ele, o cinema podia sempre reinventar-se através das outras artes.