E Agora? Lembra-me, de Joaquim Pinto, é uma especialíssima viagem pelas fronteiras (ou pela ausência de fronteiras) entre a vida e o cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Setembro).
Ansiosos e pueris, os repórteres televisivos do futebol gostam de perguntar aos seus heróis: “Que emoção sentiu no momento do golo?” A pergunta envolve uma violência simbólica que vale a pena observar, já que nela se reflecte a ideologia dominante das imagens (e sons) do nosso tempo: por um lado, supõe-se, explicitamente, que a emoção é um fenómeno linear e determinista que se pode “localizar” no tempo do mesmo modo que o horário de abertura do comércio ou a partida de um comboio; por outro lado, considera-se, implicitamente, que a emoção se presta a ser “descrita” com o mesmo automatismo com que se diz ao parceiro do lado que horas são...
Falo de quê? Do belíssimo filme de Joaquim Pinto, E Agora? Lembra-me, precisamente um desses objectos cujas singularidades nos podem levar a questionar muitas evidências adquiridas e outros tantos logros normalizados.
Neste mundo em que triunfaram os horrores do Big Brother, a intimidade tende a ser tratada como uma função descartável, susceptível de ser partilhada como um obsceno desporto social. O que tal sistema de “comunicação” tem instilado na sociedade é a noção de que o factor humano é sempre anedótico e irrisório, disponível para todas as irresponsabilidades audiovisuais.
Joaquim Pinto filma a sua intimidade como um universo que acaba por integrar a decisão, de uma só vez ética e estética, de nela existir também o cinema — não é um filme “sobre” a intimidade, é uma intimidade vivida também como um filme. O que ele filma com o seu companheiro Nuno Leonel (e os seus quatro cães) está longe de ser um mero processo de “reportagem” sobre o facto de, a certa altura, ter decidido submeter-se a tratamentos experimentais contra o VIH (sida) e o VHC (hepatice C). Aqui, o cinema emerge e, num certo sentido, reinventa-se como dispositivo cúmplice do desejo de viver, do desejo de continuar a viver.
Dos tempos heróicos da Nova Vaga, herdámos a dicotomia teórica e prática definida pelo par “o cinema e a vida”, aliás, “o cinema ou a vida”. Os grandes mestres do classicismo eram mesmo tradicionalmente classificados em função de uns escolherem o “cinema”, caminhando para uma depuração formal à beira do metafísico (Hitchcock), enquanto outros preferiram a “vida”, partilhando os altos e baixos das suas personagens (Rossellini).
Digamos que a história nos ensinou a entender tal dicotomia, não como uma verdade absoluta, antes como um protocolo descritivo para nos aproximarmos do núcleo existencial do próprio facto cinematográfico. A saber: não se sai da vida para entrar no cinema, não se fazem filmes como se fosse possível suspender a vida. E Agora? Lembra-me é um desses acontecimentos radicais em que o viver e o filmar se entrelaçam de forma inusitada, mostrando-nos que a comoção mais perturbante e o pensamento mais abstracto são momentos cúmplices do mesmo gesto criativo.