E TUDO O VENTO LEVOU (1939) |
Nenhum filme é "bom" ou "mau" por ser um blockbuster... Nenhum filme é "bom" ou "mau" por ser a mais rudimentar das produções independentes... Dito de outro modo: a dimensão económica/financeira do cinema pode e deve ser compreendida para lá dos sinais mais superficiais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Setembro), com o título 'Ser ou não ser um "blockbuster"'.
Steven Spielberg, Martin Scorsese, Clint Eastwood. E também David Fincher, Paul Haggis ou Jason Reitman... O cinema americano contemporâneo é, de facto, uma paisagem fascinante. E só mesmo o mais rasteiro anti-americanismo cultural, induzido por preconceitos da direita ou alimentado pela cegueira da esquerda, se pode dar ao luxo de ignorar a vitalidade de uma produção marcada por muitas inovações temáticas e permanentes riscos narrativos e estéticos.
Como sempre, esse mesmo anti-americanismo funciona como cortina de fumo ideológica que, através dos seus lugares-comuns, impede a discussão do espaço comercial do cinema americano (em particular na Europa). Exemplo recente: o sucesso de um dos chamados blockbusters de Verão — Guardiões da Galáxia, realizado por James Gunn — tem sido rotulado como sinal de que as audiências estão cansadas do negrume de algumas aventuras de “super-heróis”. O humor mais ou menos caricatural, apontado como a “novidade” deste sucesso, seria a resposta óbvia às rotinas instaladas por outras grandes produções mais ou menos “galácticas”.
De facto, por mim, não creio que o humor destes Guardiões consiga ser mais do que uma imitação tosca do que George Lucas propôs com o primeiro episódio de A Guerra das Estrelas, já lá vão mais de 30 anos (foi em 1977...). Em todo o caso, mesmo que o leitor não partilhe do meu desencanto, gostaria de voltar a chamar a atenção para aquilo que, por regra, não se analisa quando se abordam os sucessos de blockbusters. A saber: o relativismo dos seus números.
Com mais de 600 milhões de dólares de receitas globais (cerca de metade nos EUA, a outra metade no resto do mundo), a performance financeira dos Guardiões envolve valores gigantescos. Resta saber porque é que muitas notícias que dão contam do facto se “esquecem” de acrescentar que a sua produção custou 170 milhões, o que, de acordo com a mais estrita normalidade dos grandes estúdios, significa que pelo menos outros 170 se gastaram na sua promoção.
Mais ainda: vale a pena dizer que, sendo nas salas americanas o maior sucesso de 2014, na lista de receitas corrigida pelos valores da inflação, os Guardiões não estão em primeiro, nem em segundo... mas no 191º lugar [actualização]. O filme que continua a liderar tal tabela dá pelo nome de E Tudo o Vento Levou, surgiu em 1939 e acumulou receitas que mais do que quintuplicam as dos Guardiões.
E se Guardiões da Galáxia fosse uma esplendorosa obra-prima? Mais do que nunca, importa repetir que, face a estes dados, não é isso que estamos a analisar. Nenhum filme é melhor ou pior por causa dos cifrões que movimenta... O que está em causa é o facto de a imagem mais forte do cinema americano ser a que resulta de uma histeria economicista que, afinal, menospreza a singularidade dos filmes. Até porque esta semana se estreou o maravilhoso Jersey Boys, de Clint Eastwood!...