segunda-feira, setembro 01, 2014

O "futebolês" televisivo

LUCIAN FREUD
Natureza morta com livro
1992
O "futebolês" televisivo tornou-se uma lenga-lenga que ameaça destruir a mais básica dignidade da língua portuguesa. E não parece haver muita gente que, nas próprias televisões, se interesse por tal tragédia — esta crónica de televisão foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (29 Agosto), com o título 'Palavras ilusórias'.

1. Nada a fazer: repórteres, jornalistas e comentadores (sobretudo da área do futebol) continuam a aplicar os verbos no infinito como se esse fosse um padrão obrigatório da língua portuguesa. A virose de frases que começam por expressões como “dizer que” ou “lembrar que” reflecte um ambiente de indiferença que favorece e promove a agressão do nosso património linguístico. Não se trata de penalizar os normalíssimos erros de construção discursiva que podem afectar o falar televisivo. O que se regista, com espanto, é o facto de um disparate gramatical tão fácil de corrigir ter chegado ao ponto de funcionar como imagem de marca de “ligeireza” de comunicação e “à vontade” perante o espectador. Afinal, é ou não verdade que editores e directores estão lá para, com sensatez e pedagogia, ajudarem a corrigir estes erros, evitando a sua transformação em regra compulsiva? Ser triste.

2. Já conhecíamos a generalização futebolística do “tu” como tradução (?) do “you” da língua inglesa. Assim, para alguns jogadores, treinadores e comentadores, passou a ser chique transformar um sujeito indefinido numa alusão directa a uma pessoa. Já não se diz, por exemplo, que “quando se joga com três defesas, há que ter cuidados especiais”. Nada disso: agora está na moda dizer “quando tu jogas com três defesas”... Será que não és capaz de pensar um bocadinho, um brevíssimo instante, naquilo que estás a dizer?

3. Entretanto, com a pacatez da irresponsabilidade, surgiu mais uma invenção futebolística para consolidar as nossas misérias falantes. Assim, cada vez que um jogador ou treinador de língua espanhola utiliza a palavra “ilusión” (por exemplo: “ilusión de ganar”), há sempre um ansioso repórter, ou mesmo um solícito jornalista, que nos informa que o dito jogador ou treinador tem a “ilusão de ganhar”... ignorando que a palavra “ilusión” pode, em determinados contextos, significar “expectativa”, “ter esperança” ou “ter vontade”. Não pensar? Tens a ilusão de que estás a pensar?