sexta-feira, setembro 12, 2014

Maio 68 por Godard (3/3)

Uma nova edição em DVD permite-nos reencontrar quatro títulos fundamentais da filmografia de Jean-Luc Godard: são obras marcadas pelas convulsões de Maio 68 e também pela procura de outras linguagens cinematográficas e ideias inovadoras para a política — este texto foi publicado no suplemento 'Qi', do Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'A arte de filmar a partir do zero'.

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Os Ventos de Este e Vladimir e Rosa são dois dos títulos do Grupo Dziga Vertov, normalmente integrados (e esquecidos) naquilo que se convencionou chamar a “fase militante” de Godard. Sendo objectos saturados das retóricas ideológicas da época — incluindo a discussão das heranças do marxismo-leninismo e das suas derivações maoístas —, tais filmes funcionam também como delirantes jogos de espelhos sobre a energia e os limites de tais retóricas. Em boa verdade, Godard tomava à letra a interrogação de Lenine — “Que fazer?” —, para problematizar a urgência de um cinema capaz de repensar a história colectiva e, no seu interior, as histórias pessoais.
Convém, por isso, não esquecer que estes filmes conjugam o maior desespero face aos impasses sociais com a emergência de um ziguezague conceptual e irónico, genuinamente enraizado nas lições de Bertolt Brecht (4), quer dizer, na necessidade de criar uma distanciação crítica capaz de transfigurar o discurso político e, no limite, a própria fruição da obra. Integrando o actor Gian Maria Volonté, na altura emblema de um certo “cinema político” que vinha de Itália, Os Ventos de Este funciona como uma performance satírica em que o “sermão” político coexiste com a sua decomposição em forma de farsa, convocando até alguns códigos clássicos do western.
É neste filme que surge a célebre máxima sobre a “justeza” e a “justiça” das imagens, brincando com a ambivalência da palavra francesa “juste” — Ce n’est pas une image juste, c’est juste une image —, lembrando que uma imagem não é “justa”, mas que é “apenas” uma imagem. O sentido paródico é ainda mais acentuado em Vladimir e Rosa, desde logo pelos nomes das personagens assumidas pelos próprios Godard e Gorin — respectivamente “Vladimir” (Lenine) e “Karl Rosa” (Luxemburgo). Mais do que isso, abrindo e fechando o filme com a apresentação das tarefas de maquilhagem dos actores, a narrativa apresenta-se como uma procura de outras entidades para dizer/protagonizar as dúvidas e perplexidades das novas conjunturas sociais.
Nesta série de pequenas produções “militantes”, a que também pertencem, por exemplo, Pravda e Lotte in Italia (ambos de 1969), está implícita uma vontade política de diversificação das formas de produção e difusão. Em boa verdade, são projectos que antecipam muitos modelos hoje em dia correntes, já que foram todos eles produzidos por diferentes cadeias de televisão da Europa: o Grupo Dziga Vertov procurava, assim, territórios alternativos à própria indústria cinematográfica. O que conduziu a outro paradoxo: obviamente não satisfazendo as convenções televisivas correntes, os filmes tiveram uma difusão ultra-discreta (a RAI recusou mesmo exibir Lotte in Italia).
Daí um novo gesto, ainda paradoxal, de admirável ousadia artística e simbólica. Face às dificuldades de dar a ver os próprios filmes (durante décadas, foram mesmo conhecidos como o “cinema invisível” de Godard), o Grupo Dziga Vertov decide regressar ao coração da grande indústria, mais precisamente à poderosa Gaumont. Tudo Vai Bem é o resultado concreto de tal opção, para mais convocando duas estrelas do cinema dos dois lados do Atlântico, bem conhecidas pelas suas militâncias políticas: Yves Montand, uma das primeiras personalidades da esquerda francesa (ainda que sem filiação partidária) a denunciar os crimes estalinistas, e Jane Fonda, na altura envolvida em acções de protesto contra o envolvimento militar dos EUA no Vietname.
Se há filmes visceralmente “brechtianos” na história do cinema, Tudo Vai Bem é, por certo, o mais genuíno de todos eles. Desde logo, porque começa com a apresentação muito cândida da sua própria gestação financeira: numa série de planos de cheques a serem assinados, é-nos dado conhecimento das verbas investidas nas mais diversas tarefas de produção. Depois, porque a acção das personagens — Montand é um cineasta francês que faz publicidade para sobreviver, Fonda é uma jornalista americana sediada em Paris — é tratada, não a partir de uma mera identificação profissional, mas sim como um turbilhão de objectos materiais, valores morais, significados e significações em que tudo se cruza e contamina, desde a situação nuclear do filme (uma fábrica paralisada pelos operários em que o patrão foi feito refém) até à mais pura intimidade (há um espantoso diálogo entre os protagonistas sobre o lugar do sexo na organização da sua vida comum).
Insolitamente, na sua genial dialéctica narrativa, Tudo Vai Bem seria também o princípio do fim da colaboração Godard/Gorin. No interior do universo “godardiano”, ficava sinalizado o desejo de novas linguagens para lidar com os impasses das lutas sociais e do pensamento político. Retomando sugestões já dispersas nos filmes deste período no sentido de integrar as emergentes técnicas de vídeo (há mesmo uma cena deliciosamente burlesca em Vladimir e Rosa, com câmaras e imagens de vários ecrãs de televisão), Godard iria abrir o frondoso capítulo da sua “videografia”, cuja lógica desembocará nesse objecto monumental que se chama História(s) do Cinema (1994-98). O primeiro momento do novo período surgiu em 1975, com o filme intitulado Número Dois. Porquê tal designação? Porque, como disse Godard, era o seu “segundo primeiro filme”.
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(4) BERTOLT BRECHT (1898-1956): escritor, dramaturgo, encenador, fundador do Berliner Ensemble, Brecht é uma personalidade central na história das ideias do séc. XX e, em particular, na discussão do valor político das artes. Mãe Coragem e os Seus Filhos (1939) ou O Círculo de Giz Caucasiano (1944) são referências lendárias do seu trabalho.