segunda-feira, setembro 08, 2014

Maio 68 por Godard (2/3)

Uma nova edição em DVD permite-nos reencontrar quatro títulos fundamentais da filmografia de Jean-Luc Godard: são obras marcadas pelas convulsões de Maio 68 e também pela procura de outras linguagens cinematográficas e ideias inovadoras para a política — este texto foi publicado no suplemento 'Qi', do Diário de Notícias (30 Agosto), com o título 'A arte de filmar a partir do zero'.

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Em 1968, Godard foi a Inglaterra rodar o lendário Sympathy for the Devil, com os Rolling Stones, durante as sessões de gravação do álbum Beggars Banquet. Combinando um olhar de raiz documental sobre a banda de Mick Jagger com a teatralização de “cenas políticas” que reflectiam as grandes convulsões ideológicas do momento, o filme decorria de uma interrogação eminentemente cinematográfica: que fazer com as imagens e os sons, como filmar uma nova conjuntura em que todos pressentiam a emergência de novas formas de pensamento e acção social?
Por alguma razão, o título Sympathy for the Devil, pedido emprestado à canção dos Stones a cujos ensaios assistimos, nunca foi do agrado de Godard (tendo resultado de um processo de “apropriação” do produtor que, aliás, na altura, gerou uma viva polémica). O verdadeiro título, convém lembrar, é One + One — para Godard, tratava-se de voltar a filmar a partir do zero, reaprendendo a contar “um + um”.
Se esse é o filme de uma nova aritmética, então importa perguntar: onde está o “zero” que precede o “um + um”? Pois bem, tinha surgido um ano antes, em 1967, precisamente com Fim de Semana. Para além de corresponder ao derradeiro limite de um certo olhar “sociológico” sobre a França da primeira metade da década de 60 — obviamente partilhado com outros autores da Nova Vaga, como Eric Rohmer (1), François Truffaut (2) ou Claude Chabrol (3) —, Fim de Semana testemunhava também o fim de todas as ilusões, românticas ou romanescas, que a cinefilia clássica tinha sustentado. Por alguma razão, este retrato infinitamente cruel de um casal (Mireille Darc/Jean Yanne) à deriva numa França apocalíptica, começa com um cartão/legenda em que se escreve: “Um filme perdido no cosmos”. Não é, entenda-se, uma errância idealista, mais ou menos libertária, que assim se propõe. Bem pelo contrário, trata-se de uma descida a uma realidade infernal, em que todas as relações humanas surgem decompostas pela inveja, a avareza ou o mercantilismo. Para que não restem dúvidas, alguns segundos depois, um novo cartão informa: “Um filme encontrado no ferro-velho”.
Dziga Vertov
(1896-1954)
Com todas as suas consequências simbólicas, os acontecimentos de Maio 68 acabaram por emprestar, “a posteriori”, a Fim de Semana a marca ambivalente e perversa de um objecto “premonitório”: com o tradicional núcleo conjugal reduzido a uma caricatura consumista, sem amor nem sequer partilha sexual, o tecido social só pode desembocar na dramática decomposição dos valores do par, da família e, afinal, de todas as gerações. Aliás, esse efeito de “premonição” acabou por colar-se ainda mais a La Chinoise, retrato tão didáctico quanto sarcástico de um grupo de militantes maoístas: não poucas vezes citado como uma abordagem da juventude de Maio 68, de facto, La Chinoise foi rodado ainda antes de Fim de Semana, tendo estreado em Paris a 30 de Agosto de 1967 (Fim de Semana chegaria às salas cerca de quatro meses mais tarde, a 29 de Dezembro).
Nesta conjuntura, Godard foi levado a questionar o próprio conceito de autor que sustentou o essencial do imaginário cinéfilo e jornalístico da Nova Vaga — como ele chegou a dizer, na expressão “política dos autores” atribuiu-se demasiada importância aos “autores”, esquecendo a palavra “política”. Era preciso gerar uma nova entidade criativa, capaz de se adequar às interrogações e perplexidades do seu presente, projecto que se traduziu num laço de colaboração com o jornalista e investigador político Jean-Pierre Gorin: a dupla Godard/Gorin passaria a assinar como Grupo Dziga Vertov (convocando, assim, o nome de um dos cineastas fulcrais da vanguarda soviética, autor do emblemático O Homem da Câmara de Filmar, de 1929). Como o próprio Godard viria a resumir em entrevista ao jornal Le Monde (27/04/1972), a novidade não era “Godard está de volta”, mas sim “alguém chega”, alguém que se chama Gorin.
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(1) ERIC ROHMER (1920-2010): porventura o mais “teórico” dos cineastas da Nova Vaga, autor da tese A Organização do Espaço no Fausto de Murnau. Sempre apoiada em admiráveis diálogos, grande parte da sua obra está organizada em ciclos (“Seis Contos Morais”, “Comédias e Provérbios”, etc.). Exemplo modelar do seu trabalho: A Minha Noite em Casa de Maud (1969).

(2) FRANÇOIS TRUFFAUT (1932-1984): primeiro discípulo de André Bazin (1918-1958), patrono da Nova Vaga francesa, deixou uma obra admirável, ao mesmo tempo romanesca e autobiográfica. Estreou-se com Os 400 Golpes (1959), incluindo a sua filmografia títulos como Jules e Jim (1962), A Sereia do Mississipi (1969) e O Último Metro (1980). Autor de Hitchcock/Truffaut (edição definitiva: Gallimard, 1983), um clássico livro/entrevista.

(3) CLAUDE CHABROL (1930-2010): terá sido o mais “comercial” dos cineastas da Nova Vaga, no sentido em que, sem complexos, trabalhou sobre modelos da grande indústria, a começar pelo policial. Filmou obsessivamente os fantasmas da vida conjugal (A Mulher Infiel, 1969) e também os grandes escândalos sociais (Violette Nozière, 1978). Derradeiro filme: Bellamy (2008), com Gérard Depardieu.