domingo, setembro 14, 2014

Karajan: um homem de discos (4)


Hoje falamos sobre o que era, afinal, o "som" Karajan e recordamos o seu método de trabalho em estúdio, durante gravações. Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.

O ciclo de Beethoven cujas gravações começaram em 1962, definiu “uma estética sonora que se fez mítica”, defende Thierry Soveaux em Deutsche Grammophon: State of the Art. Gravados na Jesus Christus-Kirche em Berlim-Dahlem, estes discos representam a primeira integral sinfónica de Beethoven em estéreo. Soveaux defende contudo que “o esplendor do som Karajan/Berlim” ganhou com a chegada da nova tecnologia digital.

Para Michel Glotz, produtor executivo das gravações do maestro, o “som” de Karajan era “rico, cheio e sensual”, revelando que “contrariamente ao que muitas vezes foi escrito o som foi relativamente pouco retrabalhado tecnologicamente salvo algumas ocasiões – para fazer sobressair as cordas, por vezes os metais – de acordo com os desejos de Karajan” (13). O produtor garante que nunca manipularam o som “para enaltecer um legato ou alterar o volume”.

Tendo seguido Karajan durante mais de 30 anos, Glotz diz-se “bem colocado para comentar o facto de esta ideia do ‘som Karajan’ ser excessiva, como se se estivesse a falar de uma receita fixa”. Porque, defende, “o som evoluiu, não apenas por conta da sua própria demanda estética, mas também pelos desenvolvimentos tecnológicos na gravação sonora e meios onde, como por vezes se esquece, se determina a reprodução final do som”. O produtor sublinha ainda que não só Karajan se “adaptava perfeitamente às mudanças tecnológicas para fazer delas o melhor uso estético, como buscava constantemente novos desenvolvimentos”. Essa é a razão pela qual explica porque regravaram os principais trabalhos do seu repertório, como as sinfonias de Beethoven e Brahms. (14)

Do ponto de vista meramente estético Glotz aponta os maestros Wilhelm Furtwangler, Bruno Walter e Arturo Toscanini como os modelos de Karajan. “Era uma síntese da disciplina germânica e a criatividade mediterrânica”, acrescenta. Muitas vezes dizia que era um austríaco com raízes gregas, comenta o produtor. Karajan “admirava Giulini, e da sua geração gostava de Maazel. Tinha uma boa relação com Bernstein, que convidava para almoçar sempre que vinha à Europa”. Glotz diz que Karajan teve mais que respeito por Bernstein, que terá levado Karajan a aderir a Mahler, o que aconteceu na etapa final da sua carreira.

Ao contrário do mítico Karl Böhm, que abria os braços para o público no final das suas atuações, ou da pose quase dançante com que Bernstein muitas vezes acompanhava certas obras, Karajan optava por um registo discreto e sóbrio frente às plateias. Era um homem reservado. A historiadora Annemarie Kleinert defende que essa atitude, que alguns apontam como timidez, talvez tenha ajudado a construir a sua própria fama. “Ele ganhou uma imagem de arrogante e altivo nos media, graças a anos de cooperação (ou melhor, de não cooperação), mas tinha um bom relacionamento” com a sua equipa técnica em estúdio, recorda o produtor Ewald Markl (15)

Em estúdio “gravava takes longos, raramente interrompidos, e só tinha a partitura na mão quando fazia correções ou estava ao telefone”. As gravações decorriam “numa atmosfera de concentração calma e nunca uma palavra era proferida em alto volume. Ele só ficava visivelmente irritado se fosse interrompido durante o seu trabalho”, recorda Ewald Markl, produtor e editor na Deutsche Grammophon. (16) Seguia as gravações com auscultadores e tinha consigo um cronómetro para anotar eventuais correções. Muitas vezes passou noites frente à mesa de mistura com os técnicos. E frequentemente elogiava perante os músicos o trabalho das equipas de estúdio. A sua fácil adesão às novas tecnologias talvez seja expressão de uma paixão antiga, já que, antes de mudar para música, passou três semestres na Technische Hochschule da Universidade de Viena.

Apesar de ter passado por etapas distintas na maneira de dirigir, dos pungentes movimentos de pulso que recorda quem os viu nos anos 30 aos modos mais subtis com que os vemos nas gravações em vídeo captadas na década de 80. Ao longo dos tempos o que não mudou foi o seu hábito de dirigir sem a partitura à sua frente. Tanto que, nos próprios ensaios, citava por vezes Hans von Bülow, que afirmara que “um músico não deve ter a sua cabeça na partitura, mas a partitura na cabeça”. O facto de se apresentar frente à orquestra sem partitura, muitas vezes dirigindo de olhos fechados, chegou a gerar alguns episódios, um deles tendo enervado Adolf Hitler durante uns Mestres Cantores de Nuremberga, na Berlin Staatsoper em junho de 1939 quando, depois de um dos cantores se ter sentido indisposto e saltado uma passagem, a confusão se instalou por momentos.

(13) in Deutsche Grammophon: State of the Art (Rizzoli, 2009), pág. 160.
(14) ibidem.
(15) idem, págs. 163-64.
(16) ibidem.