O regresso do filme A Desaparecida (1956), de John Ford — reposto em nova cópia digital no cinema Ideal — constitui mais um importante evento na recuperação das mais genuínas memórias cinéfilas — este texto integrava um dossier publicado no Diário de Notícias (29 Agosto).
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Até que ponto os espectadores (des)educados a ver filmes ditos de “efeitos especiais” — dominados pela instabilidade arbitrária da imagem e ruídos ensurdecedores — terão olhos e ouvidos, corpo e alma para descobrir a complexidade histórica, dramática e pulsional de um filme como A Desaparecida (1956), de John Ford? A questão está longe de ser meramente cinéfila. Em boa verdade, coloca em jogo os modos de existência comercial do património cinematográfico e também a capacidade de cada ser humano aceder a linguagens que deixaram de ser correntes nas produções contemporâneas.
Não se trata apenas de um problema museológico de conservação. O que está em jogo é um drama eminentemente cultural, até porque os filmes, mesmo os mais antigos, vêm ocupar o “mesmo” lugar em que surgiram — a saber: um ecrã de uma sala escura.
Que continue a haver salas como o novo cinema Ideal para nos permitir o reencontro de pérolas como A Desaparecida, eis um facto que, por tudo isso, não pode (e, a meu ver, não deve) ser reduzido a qualquer parâmetro banalmente nostálgico. Na verdade, um cineasta como Ford é um criador que nos convoca para a verdade mais íntima das imagens e dos sons, quer dizer, para o facto de o cinema não ser uma mera “reprodução” do mundo nem, muito menos, um fútil gadget de exibicionismo tecnológico.
Escusado será dizer que tudo isto passa pela capacidade de concentrar num filme como A Desaparecida algumas tensões internas da identidade americana e, em particular, da relação histórica entre brancos e índios. O espectador que encarar tudo isso como uma anedota fútil engana-se. Pior do que isso: não está disponível para sentir como as imagens e os sons, por mais remotos que possam ser, questionam sempre o seu presente.