quarta-feira, setembro 03, 2014

A herança de John Ford (1/2)

O regresso do filme A Desaparecida (1956), de John Ford — reposto em nova cópia digital no cinema Ideal — constitui mais um importante evento na recuperação das mais genuínas memórias cinéfilas — estes textos integravam um dossier publicado no Diário de Notícias (29 Agosto).

Com uma carreira de mais de uma centena de títulos, desde os tempos do cinema mudo até 1966 (ano do derradeiro filme, Sete Mulheres), John Ford é uma das mais genuínas encarnações do classicismo de Hollywood (faleceu em 1973, com 79 anos). Mestre do “western” e do filme de guerra, mas também do fresco histórico e do melodrama, continua a ser o realizador mais “oscarizado” de sempre, com quatro estatuetas douradas obtidas por O Denunciante (1935), As Vinhas da Ira (1940), O Vale Era Verde (1941) e O Homem Tranquilo (1952). O American Film Institute consagrou-o com um prémio de carreira em 1973. A sua personalidade está retratada no documentário Directed By John Ford (1971), de Peter Bogdanovich.

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John Ford
É um facto: as salas escuras recuperaram o gosto pelos grandes clássicos. Nos últimos tempos — mais precisamente desde Dezembro de 2012, quando foi reposto Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock —, têm sido muitos e variados os títulos a regressar ao mercado em cópias novas, digitalmente restauradas. Já tivemos, por exemplo, Hiroshima Meu Amor (1959), de Alain Resnais, Lawrence da Arábia (1962), de David Lean, ou uma colecção de títulos do mestre japonês Yasujiro Ozu. Agora, é a vez de A Desaparecida (1956), de John Ford (em reposição no novíssimo cinema Ideal).
Dizer que estamos perante um dos momentos mais emblemáticos de toda a história do “western” americano é quase um lugar-comum que, em todo o caso, não deixa de ser rigorosamente verdadeiro. Para nos ficarmos pelas consagrações “oficiais”, lembremos que A Desaparecida (título original: The Searchers), figura em primeiro lugar na lista dos melhores “westerns” de sempre estabelecida pelo American Film Institute (surgindo na 12ª posição no Top 100 dos melhores filmes americanos).
A Desaparecida corresponde a uma fase do “western” em que as histórias contadas já não se centram em heróis puros e “transparentes”, questionando muitas memórias do velho Oeste, a começar pelas relações entre brancos e índios. Aliás, tudo passa pela complexidade ideológica e psicológica da figura central de Ethan Edwards, um veterano da Guerra Civil que, não por acaso, é frequentemente apontado como o mais elaborado trabalho de interpretação de toda a carreira de John Wayne.
Baseado no romance The Searchers (1954), de Alan Le May, o filme inicia-se com o regresso de Ethan à quinta do seu irmão Aaron (Walter Coy). Acaba por ser uma visita acidentada, já que, quase toda a família morre na sequência de um violento ataque de índios Comanches que raptam Debbie, a sobrinha mais nova de Ethan... Será ela o fulcro de uma obstinada demanda de cinco anos, a ponto de Ethan começar a duvidar da possibilidade de a resgatar da identidade Comanche que, entretanto, terá adquirido. Personagem fascinante, literalmente entre dois mundos, Debbie corresponde a um momento determinante na carreira de Natalie Wood, na altura uma jovem estrela em rapidíssima ascensão (cerca de um ano antes contracenara com James Dean, em Fúria de Viver, sob a direcção de Nicholas Ray).
Para a história, registe-se que A Desaparecida não foi um filme consagrado na altura do seu lançamento, não tendo sequer chegado às nomeações para os Oscars. De qualquer modo, em 1989, deu entrada no programa de conservação de clássicos do cinema americano coordenado pela Biblioteca do Congresso.