terça-feira, agosto 05, 2014

O futebol como conflito permanente

GEORGE GROSZ
Pessoas
1919
Porque é que a maior parte dos discursos televisivos sobre o futebol ignora o prazer do próprio jogo? — esta crónica foi publicada na revista "Notícias TV", do Diário de Notícias (1 Agosto), com o título 'Conflitos futebolísticos'.

Há qualquer coisa de insolitamente dramático no desenvolvimento da chamada pré-temporada futebolística. Escusado será dizer que o modo como construímos (ou somos levados a construir) a percepção televisiva das suas convulsões não pode ser considerado um fenómeno apenas televisivo — em boa verdade, os seus sinais estão presentes em todo o território da comunicação social. O certo é que o espaço televisivo, e não apenas nos canais dedicados ao desporto, todos os dias reflecte e agudiza um paradoxo que vale a pena registar.
Assim, por um lado, a dança das transferências gera manchetes atrás de manchetes, dando conta de espectaculares mudanças de clube de algumas das grandes estrelas do futebol mundial — na prática, vemos (ou somos levados a ver) tais personagens como banais peões intermutáveis, quase sempre seguindo e perseguindo o contrato em que se podem ler mais zeros ligados a mágicos cifrões. Ao mesmo tempo, por outro lado, desde muitos comentários especializados às reportagens de rua com adeptos mais ou menos ululantes, a noção de pertença a um clube é enfatizada até às mais grosseiras formas de facciosismo.
Não é um fenómeno fácil de entender nas suas componentes, quanto mais não seja porque o mais elementar bom senso leva a ter em conta que mesmo o comentador mais retórico ou o adepto mais eufórico serão pessoas que, em última análise, gostam mesmo de futebol, da beleza dos seus lances e da inteligência das estratégias que pode envolver. O problema é de outra natureza. Que é como quem diz: muito pouco desse gosto passou a estar presente nas abordagens televisivas do futebol.
Na prática, isso contribui para uma sintomatologia (que, sendo futebolística, é sempre social) que importa enfrentar. Assim, qualquer discurso que tenda a celebrar o futebol pelo futebol — entenda-se: fora de qualquer radicalismo clubista — é implicitamente tratado como coisa pouco interessante, intelectualmente dispensável, porventura moralmente suspeita. Vivemos num tempo de automática celebração do conflito pelo conflito.