quarta-feira, agosto 06, 2014

O ciúme segundo Garrel (2/2)

Philippe Garrel continua fiel ao seu cinema obsessivamente fixado na intimidade: Ciúme é mais um notável exemplo do seu trabalho — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Agosto), com o título 'todos os afectos'.

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Numa cena de Ciúme, num jardim, Louis passeia com a filha, Charlotte, na companhia da namorada, Claudia. A certa altura, percebe que Charlotte traz um chupa-chupa que, de facto, Claudia roubou para Charlotte. Num misto de censura e cumplicidade, Louis exige que elas devolvam o doce, coisa que a certa altura se propõem fazer, regressando ao quiosque por onde passaram. Se o fariam ou não, de facto não o saberemos, já que Louis acaba por chamá-las de volta...
O que é sublime em cena tão “inútil” (a acção não “avança”, dirá o senso comum) é que, através do seu carácter inconclusivo, Philippe Garrel coloca em cena três vectores fundamentais: a ordem social e a ordem familiar como entidades que vivem de ambíguas coincidências; o modo como os laços amorosos fazem nascer uma nova ordem; enfim, a ligação perversa, dir-se-ia incestuosa, entre desejo de ordem e possibilidade de ruptura.
Infelizmente, vivemos num tempo em que a linguagem dominante (leia-se: a telenovela) reduz estes pequenos terramotos familiares a dispositivos de banal determinismo moralista. Garrel é um cineasta que respeita a infinita complexidade dos impulsos afectivos — Ciúme é mesmo um filme de mestre, quer dizer, de alguém que não desistiu de olhar e sentir.