sexta-feira, agosto 01, 2014

Leituras de verão: Truman Capote

“Apesar de os jornais da manhã apenas anunciarem um calor moderado, por volta do meio-dia tornou-se evidente que algo de excepcional se estava a passar, e os empregados de escritório, que regressavam do almoço com a expressão de pasmo desesperado de crianças que estão a ser maltratadas, começaram a ligar para o serviço meteorológico. A meio da tarde, enquanto o calor se fechava como a mão de um assassino sobre a boca de uma vítima, a cidade debatia-se e sacudia-se, mas – amordaçados os seus protestos, refreada a sua pressa, entorpecidas as suas ambições – era como uma fonte seca, um monumento inútil, e entrou em coma.”

Esta breve descrição de Nova Iorque em pleno verão está hoje sob os nossos olhos porque o destino que lhe fora dado pelo seu autor não se cumpriu. Truman Capote tinha deixado o apartamento numa cave em Brooklyn Heigths onde vivera nos anos 50 e deu instruções ao porteiro para que o camião do lixo levasse os pertences que lá tinham ficado... Ao ver o que ali estava o porteiro fez ouvidos de mercador, guardou o que era do escritor e durante anos esse foi certamente o seu maior segredo. Até que, depois de mortos, tanto o escritor como o porteiro, um parente deste último resolveu vender tudo, acabando o espólio na Sotheby’s que prontamente contactou o fiduciário do Fundo Literário Truman Capote. Juntamente com Gerald Clarke, biógrafo do escritor que morrera 20 anos antes, Alan U. Schwartz constatou a autenticidade do que ali estava e, além de cartas e outros manuscritos, achou um romance inédito que ocupava quatro cadernos escolares e era acompanhado por uma série de anotações. O romance fora originalmente redigido em 1943 e por várias vezes foi revisto, até que possivelmente terá sido abandonado em detrimento de Outras Vozes, Outros Quartos, que em 1948 seria publicado como o primeiro romance do escritor (que tinha então 24 anos).

Talvez pelo elevado preço das bases de licitação ou também pelo facto de ter logo ficado claro que caberia à Random House – onde Capote publicara em vida – a eventual edição do livro e ao Fundo Literário os respetivos direitos, não apareceu comprador na hora da venda. Depois de negociações, a Biblioteca Pública de Nova Iorque – que detinha já em arquivo muito do espólio do escritor norte-americano – acabou por adquirir estes manuscritos. Por seu lado, e depois de dada aprovação por uma série de conhecedores a fundo da obra de Capote, Travessia de Verão acabou por ver a luz do dia em 2006.

É um pequeno romance, com uma escrita ainda em processo de maturação mas indiciando já caminhos, ideias, imagens e interesses que conduziriam o escritor algum tempo depois ao célebre Breakfast At Tiffany’s. Esta é uma história vivida entre os dias quentes de um verão nova-iorquino, tomando como protagonista uma jovem de família rica que vive num apartamento com terraço sobre a 5ª Avenida e dá por si por sua conta quando os pais se ausentam. A ironia, as subtilezas na observação das diferenças de classe são, mais que a medula da narrativa, o calor que irradia de um texto que anunciava já um grande escritor.

PS. Este texto foi originalmente publicado no suplemento Q. do DN integrando um 'dossier' sobre livros que abordam os dias do verão.