sábado, agosto 23, 2014

Karajan: um homem de discos (3)

Hoje recordamos a história da relação de Herbert von Karajan com os discos, sobretudo na etapa em que esteve ligado à Deutsche Grammophon. Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.

Karajan “era um homem de discos”, diz Andreas Holschneider (12), antigo presidente da Deutsche Grammophon, editora para a qual registou alguns dos seus discos mais célebres e à qual esteve ligado em dois períodos da sua vida.

O maestro já tinha gravado para a editora alemã antes da guerra, estreando-se no catálogo com abertura da Flauta Mágica, de Mozart, em 1938. O regresso fez-se em 1959 com uma gravação de Ein Heldebleben, de R. Strauss (que também surge na caixa antológica). Mas o momento que marca um entendimento maior (e vitalício) entre o maestro e a editora chegou em 1963, com a edição de uma primeira integral das sinfonias de Beethoven com discos que foram vendidos por subscrição. Esta edição tornou-se não apenas uma referência do catálogo da editora como um símbolo da conquista de um estatuto que Karajan não mais perderia. Em Deutsche Grammophon: State of the Art, livro que conta a história visual e musical da editora, recorda-se que o crítico britânico Norman Lebrecht sublinhou o “carácter dúbio” do que então emergiu como um pacto entre Elsa Schiller (de ascendência judia e uma história pessoal que tinha passado por um período de deportação durante dois anos) e Karajan e Ernst von Siemens, figuras que tinham ganho primeiros momentos de notoriedade durante o regime nazi.

Ao mesmo tempo que Karajan chega à editora pela Deutsche Grammophon surgem importantes gravações de nomes como os de Lorin Maazel, Dietrich Fischer-Dieskau, Martha Agerich e Claudio Abbado (que seria mais tarde o seu sucessor em Berlim). Compositores contemporâneos como Karlheinz Stockhausen ou Mauricio Kagel assinalam, ao mesmo tempo, uma vontade da editora em manter uma presença na vanguarda na invenção musical. A década de 60 é particularmente frutuosa em gravações marcantes de Karajan, entre as quais as sinfonias de Brahms, óperas como Pagliacci e Cavaleria Rusticana captadas no La Scala, sinfonias de Bruckner e Shostakovich e uma grande tetralogia do Anel do Nibelungo registada em Berlim, numa produção conjunta com o Festival de Salzburgo, que ele mesmo fundou. 

Dos anos 70 recordam-se abordagens aos três grandes da segunda escola vienense, uma histórica gravação das Quatro Últimas Canções de Richard Strauss (com a voz de Gundula Janowitz) e novas integrais de Beethoven (entre 1975 e 77, apontadas aos 150 anos da morte do compositor) e Brahms (1977-78). Em 1972 chega à Deutsche Grammophon um outro maestro de primeira linha, Leonard Bernstein (também compositor), com quem Karajan partilhou o espaço editorial onde então se mostravam novas gravações de Carlo Maria Giulini, Seiji Ozawa ou Carlos Kleiber. A violinista Anne Sophie Mutter, uma das principais descobertas do catálogo da editora nos anos 70, deveu-se contudo a Karajan, que a dirigiu, ao lado da Filarmónica de Berlim, em dois concertos para violino com os quais a jovem se estreou em 1978. 

Nos anos 80, Karajan gravou pela terceira vez as integrais de Beethoven (em registo digital) e Brahms, não apenas em áudio mas também em vídeo. No Vaticano dirigiu uma Missa da Coroação, de Mozart, frente a João Paulo II, que conheceu edição pouco depois. A seu lado a editora mostrava agora discos de Abbado, Levine, Sinopoli e Bernstein, que se afirmaria nessa etapa como um vulto igualmente gigante no seu catálogo.

Em 1988 a editora assinalou o 80.º aniversário do maestro reeditando as suas gravações originalmente ali lançadas em discos de 78 rpm entre 1939 e 1943. Estes registos surgiram numa série de 24 CD com capas ilustradas com pinturas de Eliette, a segunda mulher do maestro. A sua derradeira gravação teve lançamento póstumo: uma Sinfonia n.º 7 de Bruckner (curiosamente Bernstein, que morreu pouco mais de um ano depois, teve também com Bruckner a sua despedida, no seu caso uma Sinfonia n.º 9).


(12) in Deutsche Grammophon: State of the Art (Rizzoli, 2009), pág. 163.