domingo, agosto 17, 2014

Karajan: um homem de discos (2)


Hoje recordamos a história da relação de Herbert von Karajan com a Orquestra Filarmónica de Berlim, que comandou durante 35 anos. Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.

A longa relação, de 35 anos, com a Orquestra Filarmónica de Berlim cimentou o estatuto global daquela que ainda hoje é uma das grandes orquestras mundiais. Apesar de colaborações anteriores, a mais profunda ligação entre maestro e orquestra começou em dezembro de 1954, quando os músicos o convidam durante os preparativos para uma viagem já planeada aos EUA. Quando Karajan assinou o contrato preliminar, em 1955, estava ainda a exercer cargos importantes em três instituições austríacas: a Wiener Staatsoper, o Wiener Singverein e o Festival de Salzburgo. Atuava então frequentemente com a Filarmónica de Viena, com a qual fazia digressões, dirigia frequentemente no La Scala (Milão), apresentava-se com uma orquestra suíça em Lucerna e gravava com a London Philharmonia Orchestra.

No livro sobre a orquestra Music At Its Best: The Berlin Philharmonic a historiadora Annemarie Kleinert frisa mesmo que, durante os primeiros anos em que Karajan assumiu a direção da Orquestra Filarmónica de Berlim, Viena era a sua casa, tanto que durante muito tempo teve uma suíte no hotel Savoy em Berlim, mais tarde no Kempinski, ao mesmo tempo que mantinha residências em Salzburgo, Saint Mauritz e Saint Tropez. O seu calendário contratual obrigava-o a sete meses de obrigações anuais em Viena, aos quais somava mais dois em Salzburgo. Dava então em Berlim os seis concertos anuais agendados, aos quais juntava o de Ano Novo, assim como acompanhava a orquestra em digressão. Annemarie nota no livro que Karajan ensaiava “intensamente nas poucas semanas da sua presença” em Berlim e que fazia já gravações com a orquestra, mas “em conjunto os músicos tinham apenas esporadicamente a possibilidade de discutir assuntos importantes com ele”, ao passo que os “espectadores lamentavam a magra presença do principal maestro da sua Filarmónica” (8).

A mudança na relação com Berlim – que então começa a surgir com evidente protagonismo na vida de Karajan – surge não apenas após a sua ligação discográfica à Deutsche Grammophon, mas também na sequência do enorme sucesso que representou a sua primeira integral das sinfonias de Beethoven. A mudança chega entre 1964/65, período que profissionalmente corresponde à sua saída da Wiener Staatsoper, seguindo-se, até à alvorada da década de 80, o período mais frutuoso da obra de Karajan, datando de então algumas das suas mais significativas edições discográficas à frente da Filarmónica de Berlim.

Do contacto com alguns dos instrumentistas que trabalharam com Karajan, o livro de Annemarie Kleinert relata que “o respeito dos músicos da orquestra baseava-se na admirável autodisciplina e confiança de Karajan, no seu rigor ao seguir os vários planos, a sua empatia, a sua paixão e um conhecimento do que acontecia com qualquer instrumento”. O próprio maestro gabava-se ainda do seu preciso sentido de ritmo, afirmando que “podia dar uma volta ao edifício da Philharmonie e regressar ao ponto de origem num tempo preciso pré-determinado”. (9)

Os músicos da orquestra berlinense dividem-se contudo na avaliação pessoal do maestro. Ao passo que uns recordam a sua preocupação pessoal por hobbies ou, sobretudo, condições clínicas, outros apontam em si uma figura egocêntrica, com um temperamento e “modos ditatoriais” difíceis de lidar, sobretudo nos seus últimos anos de vida. Annemarie Kleinert conta no livro que alguns músicos lhe referiram que o maestro poderia ter usado os óculos em algumas situações. Mas Karajan “seguiu o compositor italiano que deu a Wagner o conselho de nunca usar óculos a dirigir, independentemente dos seus problemas de visão”. A relação de Karajan com a orquestra deteriorou-se nos anos 80. Aumentaram então as disputas entre músicos e maestro, em parte “devido à sua recusa em aceitar, sem ser questionado, certas decisões democráticas”. (10).

O afastamento da orquestra, pedido pelo próprio por carta em abril de 1989, terá não apenas decorrido do facto do agravamento da sua saúde, mas de uma sensação de “humilhação”, como defende Annemarie Kleinert, na sequência de um questionar, pela coligação então no poder, do facto de o maestro ter envelhecido em funções e de estar ausente, não apenas de audições de novos músicos ou das digressões da orquestra, mas até mesmo de Berlim. Karajan terá pedido que especificassem as suas obrigações, da ausência de uma devida resposta surgindo o desencantamento que o conduziu ao pedido de demissão. Morreira poucos meses depois, em julho do mesmo ano. A sua derradeira atuação com a orquestra seria um Requiem de Verdi, em março, em Salzburgo. Desde os 65 Karajan tinha direito a pedir uma rescisão unilateral a qualquer momento. Tinha então 81 anos. O maestro italiano Claudio Abbado, de personalidade (e orientação de repertório) bem distinta suceder-lhe-ia à frente da orquestra. (11)

(8) in Music at Its Best: The Berlin Philharmonic, de Annemarie Kleinert (ed. autor, 2009), págs. 26 e 27.
(9) idem, pág 28.
(10) idem, pág 36.
(11) Apesar das ocasionais incursões de Karajan pela música do século XX, tendo interpretado obras de Berg, Schönberg, Penderecki, Ligeti ou Orff, Claudio Abbado alargou substancialmente a relação da Filarmónica de Berlim para com a música do século XX, através de obras de nomes como Luigi Nono, Hans Werner Henze, Karlheinz Stockhausen ou Wolfgang Rihm, algo que Simon Rattle, o atual diretor artístico da orquestra, levaria ainda mais adiante.

A foto que abre o post mostra Karajan a dirigir a Berliner Philharmoniker numa Sinfonia Nº 9 de Beerhoven na magnífica sala da Philharmonie, em Berlim