sábado, agosto 16, 2014

Karajan: um homem de discos (1)


Este texto é parte de um artigo sobre uma série de reedições e antologias que revisitam a obra de Herbert von Karajan registada pela Deutsche Grammophon que foi recentemente publicado no suplemento Q. do DN com o título: 'Foram os discos que deram a Karajan a sua fama global'.

O momento ficou célebre e a fotografia correu mundo. Entre Aiko Morita e Joop Sinjou – ou seja, os presidentes da Sony e Phillips na época –, o maestro Herbert von Karajan (1908-1989) (1) tomava lugar ao centro da imagem como o rosto que dava a caução ao lançamento de um novo suporte musical. Era apresentado como “compact disc” – revelava uma duração que comportava uma “nona” de Beethoven – diz-se que por sugestão do maestro (2) - e abria o mercado da música à era digital. O novo suporte preparava-se para em poucos anos destronar o LP em vinil do protagonismo que conhecia desde os anos 50 no mercado da música.

O maestro tinha já experimentado a gravação digital em 1979 e ordenado depois que o estúdio onde gravava fosse tecnologicamente reconvertido. Em 1981 era com convicção que se aliava assim ao lançamento do novo suporte, nessa histórica conferência de imprensa em Salzburgo. O primeiro compact disc a ser produzido em grande escala seria protagonizado pelo pianista Claudio Arrau interpretando Chopin (na pop a honra caberia ao álbum The Visitors dos Abba, sendo que foi um disco de Billy Joel o primeiro CD a ser comercializado). Mas o primeiro test pressing (3) do novo formato a ser apresentado continha uma gravação da Sinfonia Alpina, de Richard Strauss, pela Orquestra Filarmónica de Berlim, dirigida por Karajan, uma entre as várias gravações que agora regressam numa caixa antológica que une o compositor alemão ao maestro austríaco. Esta gravação representa não apenas um episódio marcante na história da música gravada como traduz um entre os vários momentos de grande entendimento estratégico entre Karajan e a Deutsche Grammophon, a editora pela qual gravou a maior parte da sua obra (4). Assim, tendo-o “como principal defensor do CD como suporte a Deutsche Grammophon foi vista como estando na linha da frente da nova tecnologia”, defende Bill Holland, antigo diretor da Universal Classics & Jazz no Reino Unido. (5)

A discografia de Herbert von Karajan é, salvo a etapa entre 1946 e 58 na qual esteve associado à EMI, feita quase toda a bordo da Deutsche Grammophon e cruza-se em vários momentos com episódios importantes na história da música gravada e dos suportes físicos em que chegou ao público. E a editora tem-no ainda hoje como uma das grandes forças do seu catálogo. A companhia nasceu em 1898 em Hannover (Alemanha), juntamente com a primeira fábrica de discos e gramofones e sob a liderança de Emile Berliner, o inventor do disco. Tendo vencido a batalha das formatos (depois do disco de Berliner suplantar o cilindro de Edison), a companhia prosperou, sendo depois afetada pelas duas guerras mundiais e a Grande Depressão. Em 1945, quando a Alemanha nazi capitula, os estúdios e fábrica em Hannover estavam destruídos. “A situação era desastrosa porque os grandes artistas ou tinham emigrado ou assinado contratos com outras companhias ou não estavam autorizados a tocar e a gravar”, recorda Andreas Holschneider, antigo diretor da Archiv e presidente da Deutsche Grammophon (6).

Depois de autorizado a retomar o seu trabalho (7), Karajan encontra nova casa editorial em Londres, onde se manteve até mesmo depois de ser eleito para suceder a Willhelm Furtwangler na direção da Orquestra Filarmónica de Berlim (lugar que ocupará até pouco antes da sua morte, em 1989, naquele que é o mais extenso “mandato” na história da orquestra).

Em 1956 a Deutsche Grammophon muda a sua sede para Hamburgo, mantendo a fábrica em Hannover. E na véspera do seu 60.º aniversário apresentou uma nova imagem para o seu logótipo, uma cartela com letras a negro sobre um fundo amarelo, com o nome da editora em três linhas, sobre si mantendo a coroa de tulipas. O surgimento da gravação estereofónica levantou um mundo de novas possibilidades, tornando-se norma na editora a partir de 1958 (uma primeira série em estéreo é então encetada por um Also Spracht Zarathustra, de Richard Strauss, gravado em Berlim por Karl Bohm). Seria com o mesmo compositor que, pouco depois, Karajan regressaria à editora alemã, para não mais a abandonar até ao fim dos seus dias.

(1) Herbert Von Karajan (1908-1989). De berço austríaco, foi um dos maestros mais famosos de todos os tempos, devendo muita da sua popularidade global ao intenso trabalho discográfico que realizou entre a EMI e, sobretudo, a Deutsche Grammophon (as suas vendas globais devem rondar os 200 milhões de discos). As suas ligações ao partido nazi nos anos 30 valeram-lhe desde cedo algumas críticas. Foi eleito para comandar os destinos da Filarmónica de Berlim em 1954, lugar que ocupou até à sua morte. Durante algum tempo liderou também a Viena Staatsoper, foi diretor artístico do Festival de Salzburgo e teve uma ligação grande com a Orquestra Filarmónica de Viena. Adepto das novas tecnologias, foi um importante defensor do CD e da gravação digital e um dos primeiros maestros a aderir à era do vídeo.
(2) Conta-se que a duração standard de um CD (na altura em que surgiu) terá sido determinada pela gravação da Sinfonia n.º 9 de Beethoven dirigida em 1951 em Bayreuth por Furtwangler, “aparentemente” segundo uma sugestão de Karajan.
(3) Um test pressing é uma “prensagem” (ou melhor, gravação, já que o termo original decorre dos tempos do vinil) em quantidades não industriais para efeitos de demonstração ou crítica.
(4) O seu catálogo inclui cerca de 800 gravações em áudio e 90 em vídeo, segundo a historiadora Annemarie Kleinert. A obra registada divide-se entre discos, filmes e programas de televisão e tem edição em vários suportes, sobretudo na Deutsche Grammophon e EMI, com alguns casos pontuais no catálogo da Decca.
(5) in Deutsche Grammophon: State of the Art (Rizzoli, 2009), pág. 144.
(6) idem, pág. 97.
(7) Como sucedeu com muitos outros artistas alemães ou a trabalhar na Alemanha, após o final da II Guerra Mundial Karajan viu o seu passado ser estudado pelos vencedores para verificar que tipo de ligação havia tido com o poder nazi. Em 1946 deu um concerto à frente da Filarmónica de Viena mas foi depois impedido de se apresentar publicamente pelas autoridades soviéticas. A proibição só foi levantada em 1947.