sexta-feira, agosto 08, 2014

Gulbenkian: jazz + cinema

Chico Hamilton
A selecção cinematográfica proposta pelo Jazz em Agosto é tão diversificada quanto motivadora — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Agosto), com o título 'Jazz, cinema e suas afinidades'.

Para além das qualidades específicas da sua selecção musical, o Jazz em Agosto, dirigido por Rui Neves, continua a propor excelentes sugestões cinematográficas. Assim, até ao dia 10, no Auditório 3 da Fundação Gulbenkian (sempre às 18h00), seis filmes confrontam-nos com memórias e estilos muito diversos, desde a “ficção documental” de Wim Wenders, em The Soul of a Man (dias 2 e 3), da série The Blues (2003), até um registo de um concerto do próprio festival, Terje Rypdal & The Chasers no Jazz em Agosto 1985 (dia 10), numa realização de Oliveira Costa proveniente do arquivo da RTP.
Não poucas vezes, as relações jazz/cinema têm conduzido os respectivos criadores a zonas de cumplicidade que estão muito para além da mera “ilustração”. Isso mesmo é referido pelo lendário baterista Chico Hamilton (1921-2013), no documentário rodado no período 1993-94 e assinado por Julian Benedikt: Dancing to a Different Drummer (dia 7) recorda, em particular, o seu prodigioso trabalho para o filme Repulsa (1965), de Roman Polanski (incluindo uma conversa entre o músico e o realizador). Importa, afinal, compreender que a música pode “comentar” uma narrativa fílmica, desde logo sabendo escolher os momentos... sem música. Mais do que isso, Hamilton recorda que, seja qual for a respectiva função, importa também saber corresponder a uma energia própria, dir-se-ia uma forma de animismo, que os sons podem conter. Como ele diz: “A música quer que eu faça a música”.
Daí que possamos considerar que o momento central deste ciclo será Step Across the Border (dia 9), filme de Nicolas Humbert e Werner Penzel consagrado como melhor documentário na edição de 1990 dos Prémios do Cinema Europeu. Trata-se, aqui, de observar e reproduzir as experiências do guitarrista Fred Frith, de acordo com uma lógica que, sendo documental, tende para uma assumida dimensão poética. Não no sentido de qualquer exaltação “abstracta”, antes através da partilha de um território comum de linguagens. Ou seja: na sua dinâmica narrativa, o filme procura “repetir” e, sobretudo, reinventar as estruturas da própria música, celebrando a liberdade inerente à montagem cinematográfica.
Será ainda possível ver: The Breath Courses Through Us (dia 6), produção já com data de 2014 em que Alan Roth assinala o cinquentenário do grupo de free jazz New York Art Quartet; e Basse Continue (dia 8), uma realização de 2008, assinada por Christine Baudillon, tomando como pretexto a passagem da contrabaixista e compositora Joëlle Léandre pelo Jazz em Agosto.
As afinidades entre jazz e cinema transcendem, assim, qualquer perspectiva “funcional” da cultura como banal acumulação de “valores”. Nada disso: o que podemos escutar e ver através destes filmes é o modo como músicos e cineastas se projectam na arte do(s) outro(s), desse modo questionando e enriquecendo o seu próprio labor criativo.