quinta-feira, agosto 21, 2014

Em conversa: Michael Cunningham (2014.4)

Continuamos a publicação de uma entrevista com o escritor Michael Cunningham feita a propósito da edição em Portugal do seu mais recente romance, A Rainha da Neve. A entrevista foi originalmente publicada nas páginas do suplemento Q,. do DN.

O título do novo livro A Rainha da Neve é uma referência a Hans Christian Andersen?
Sim, o livro pede o título emprestado a um conto dele. Quando comecei o livro sabia que lhe ia chamar A Rainha da Neve. Em parte porque gosto do conto de Andersen, mas também porque as palavras neve e rainha têm um som tão ressoante e certo... Ao começar a escrever senti que não haveria um paralelo com a história de Hans Christian Andersen... Sem soar pretensioso, acho que estava a pensar nas coisas que o inspiraram a chegar àquele conto... Como a rainha que vive no que crê ser uma perfeição, mais os grandes temas do conto que os detalhes da narrativa.

Pela sua escrita tem revelado relações com o universo da literatura e de vários autores em particular. Não há na Rainha da Neve uma presença dominante como a de Virginia Woolf em As Horas ou Walt Whitman nos Dias Exemplares. Mas fala de Flaubert mais do que uma vez. 
É verdade... Talvez porque sou um book geek... Um escritor escreve sobre coisas que lhe interessam e há muitas coisas que me interessam. O desejo do Tyler em escrever uma grande canção é algo que me interessa. A luta de Liz para amar um homem que a ame de volta interessa-me. Assim como me interessam os grandes trabalhos da literatura. E todos acabam por encontrar uma maneira de ali entrar. 

Madame Bovary é assim apenas um livro de que gosta particularmente? Foi um marco na história da literatura.
É um dos meus livros preferidos. Mas de uma forma geral as referências literárias surgem porque estão na minha mente e são parte do que penso. Não me vejo como alguém que está a promover a leitura de Flaubert.

Mas As Horas chamou muita gente à Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf...
Aí foi um efeito secundário inesperado d’As Horas. Mas era um caso diferente. O livro tinha uma relação muito intricada com Mrs. Dalloway. Havia livrarias onde se estavam a vender mais cópias do Mrs. Dalloway que de As Horas, o que me pareceu muito bom.

Como é viver depois de ganhar um Pulitzer?
Pensei muito nisso na altura e perguntava a mim mesmo: então a partir de agora é sempre a descer? E após algum tempo olhei para mim. Se quase 20 anos sem qualquer reconhecimento não te tinham parado, não o ia ser por prémios. Se a falta de sucesso não me tinha travado porque o seria com o sucesso? Seria insultuoso para tantos autores que nunca ganharam um prémio ficar histérico por causa de um. Ou seja: havia que continuar a escrever.

Através da adaptação ao cinema por Stephen Daldry, As Horas ganhou uma banda sonora por Philip Glass. Imagina quem possa dar som às canções de Tyler?
Acho que algum músico que eu respeite e que queira fazer uma abordagem fá-lo-á melhor seguindo a sua interpretação do que se seguir uma ideia minha. Acho que o que tenho para dizer das canções está já no livro.

Assimila as suas personagens?
É um pouco como os atores. Habitamos um papel. Sabemos que não somos nós, mas eles habitam-nos o suficiente ao ponto de sentirmos que temos uma vida paralela.

Os nomes que lhes dá têm alguma justificação?
É como com os diálogos: sei quais são os seus nomes. É misterioso, aparecem assim. Há elementos na ficção que são calculados, naturalmente. Mas há outros elementos que são espontâneos e intuitivos. Eu sei apenas qual é o nome daquelas personagens. E não sei porquê. Nunca tive dúvidas nem mudei um nome. É como dar o nome a um bebé. 

E as profissões? São tão importantes de imaginar para definir as personagens?
Sim. Há escritores que subestimam a importância do trabalho das personagens. Talvez seja algo que se apanha na televisão... Mas nas velhas sitcoms a ação decorria em casa, ao fim do dia, depois do trabalho. As pessoas tinham trabalhos e os espectadores sabiam quais eram. Ter um trabalho é uma experiência importante. É uma parte da nossa vida. Mas sim, presto muita atenção ao que as pessoas fazem para ganhar a vida.

E o que tem feito além da escrita de romances?
Tenho muito trabalho em mãos. Fiz um piloto para uma série televisiva para mostrar ao Showtime, um canal de cabo. E estou a fazer uma nova revisão a um argumento criado a partir de um romance de Ann Leary chamado The Good House. E a menos que mudem de ideias, a Meryl Streep e o Robert De Niro estarão no filme.

A ficção televisiva é atualmente um espaço atraente para quem escreve ficção?
É fantástica. Estou muito interessado na televisão. E não só na televisão americana. Mas a televisão americana está a viver um renascimento. Vejo várias séries. The Wire, por exemplo, mas essa já terminou... Há uma na BBC chamada Orphan Black. Muitas mais.