terça-feira, agosto 19, 2014

Em conversa:
Michael Cunningham (2014.2)

Continuamos a publicação de uma entrevista com o escritor Michael Cunningham feita a propósito da edição em Portugal do seu mais recente romance, A Rainha da Neve. A entrevista foi originalmente publicada nas páginas do suplemento Q,. do DN.

No seu novo romance o mapa político entre 2004 e 2008, apesar de nos ajudar a definir quem são as personagens, cria sobretudo um cenário temporal para esta história. O que o fez chegar então a estas personagens e que gatilho desencadeou a narrativa? Não foram Bush e Obama...
Não... É difícil dizer o que define o ponto de partida para um romance. Geralmente são várias coisas... Eu estava interessado na ideia de alguém como o Barrett, que é secular, que não tem uma relação particular com a religião e a crença, a ver algo que é inegavelmente sobrenatural.

A tal luz que ele vê uma noite...
A minha mãe era católica. E fez uma escolha interessante. Ela continuou a ser praticante mas não me obrigou a mim nem à minha irmã a irmos nem à missa nem à catequese. Deixou-nos esperar até que fôssemos mais velhos e pudéssemos escolher. E escolhi contra o catolicismo... Mas cresci com o catolicismo em casa. Os mistérios, os misticismos... Aquilo habitava a nossa casa no subúrbio e isso sempre andou na minha mente. E depois há ainda outro ponto de partida, que se foca em volta de Tyler e das drogas, em particular... Eu não tomo aquelas drogas!... A América tem a maior população presa do mundo e na maior parte dos casos é devido a leis incrivelmente severas quanto às drogas. A namorada que guiava o carro quando o namorado fez um negócio com droga, por exemplo... Estava a pensar como nos EUA se vê quem usa drogas como sendo má pessoa. A ideia de que as drogas são coisas que fazem mal, quem as usa é fraco, está a tentar escapar da realidade e terá um final infeliz... O livro não glorifica o uso da heroína ou da cocaína. Mas estou ciente do facto de não haver apenas uma história possível sobre tendências humanas e que há pessoas que tomam drogas para tentar expandir as suas consciências. Há quem use drogas como Tyler o faz. Pessoas que querem ser melhores artistas. Quando leio histórias “diz não!” penso sempre numa Nancy Reagan e na sua forma de ver a guerra às drogas na América. Que tal Cocteau? A relação da humanidade com substâncias que alteram a realidade é mais variada e complexa que apenas fraqueza e loucura. E queria escrever sobre isso.

Quão importante é, além do tempo, estabelecer também o lugar onde uma história acontece? A avenida onde vivem os dois irmãos fica em Brooklyn...
Os lugares são sempre importantes num romance. E eu escrevo sobre Nova Iorque porque vivo em Nova Iorque. Se vivesse em Lisboa o romance aconteceria em Lisboa. Aquele bairro em particular tem a sua importância. Manhattan é muito caro para todos os que não são muito ricos. E os artistas e quem não ganhe muito dinheiro estão a mudar-se para bairros mais afastados. Está a acontecer em várias cidades e não apenas em Nova Iorque. Bushwick é o bairro onde as personagens vivem... E há uns dez anos era um bairro duro. Hoje há ali cafés e galerias de arte, mas não existiriam então quando estas personagens ali viviam. Eu queria que eles vivessem um pouco à margem da sociedade. Bushwick pareceu-me o sítio certo.

Eles mudam-se depois para uma nova casa no East Village... Um upgrade?...
Não é bem a Park Avenue... Mudam-se assim para aquilo a que chamaria o limiar da civilização. Naquele lugar hoje há já alguns restaurantes, mas não quando estariam lá no tempo em que a ação decorre.

O East Village está a mudar? Onde antes estava o CBGB [o clube onde o punk conheceu um dos seus maiores focos em meados dos anos 70] hoje há uma loja de roupa de marca...
É verdade. E isso diz tudo, não é?... Onde o punk nasceu, onde a Patti Smith começou a cantar, agora vendem-se casacos de cabedal a 700 dólares. Mas é um processo estranho o do East Village, que não mudou assim tanto nos últimos anos. O que está a acontecer é que os artistas estão a mudar-se para Brooklyn.

Na sua escrita há sempre uma certa musicalidade. Podemos entender As Horas como um espaço de onde partem variações jazzísticas em torno de Mrs. Dalloway e Virginia Wolf... Aqui tem pela primeira vez alguém a escrever uma canção num livro. E a música materializa-se assim, mais do que nunca, na sua escrita.
Um amigo meu, a quem o livro é dedicado, foi quem me ensinou sobre música. Aprendi assim sobre música com um músico. E uma das coisas que descobri sobre escrever romances é que se se escreve sobre um grande poeta não se faz a sua poesia. Mas quando se escreve sobre um compositor que não é brilhante, então podemos escrever a canção. Porque, como escritor, deixa-se claro que a personagem o que está a fazer não é uma obra de arte.

Imaginou como soaria a canção (de Tyler) quando a escrevia?
Sim, imaginei! E o Billy (o tal meu amigo) ajudou-me a imaginá-la. Mas não a sei cantar. Posso cantarolar para mim mesmo.

Segundo Tyler a noção de paradigma de grande música está entre Mozart e Jimi Hendrix... Por algum motivo especial estes e não outros?
São nomes de dois grandes músicos. Poderia dizer milhares de outros. Mozart e Jimi Hendrix surgiram porque são grandes por razões bem diferentes.

Um outro nome que refere em concreto, e numa mixtape, é Leonard Cohen... Mas chama à mixtape ‘Why Don’t You Just Kill Yourself’...
Sim, é uma piada autobiográfica. Eu trocava mixtapes com um amigo... E gostávamos muito de canções tristes. E tínhamos uma série chamada why don’t you just kill yourself... Quando o meu amigo Mark descobria uma canção triste dizia-me que tinha descoberto algo que me faria saltar da janela.

São referências que ligam assim a ficção à vida de quem a cria?
A escrita tem disso. Cada escritor tem a sua maneira de o fazer, naturalmente. A escrita não é estritamente autobiográfica, mas é claro que usamos experiências pessoais, por vezes de forma indireta.