segunda-feira, agosto 18, 2014

Em conversa: Michael Cunningham (2014.1)


Iniciamos hoje a publicação de uma entrevista com o escritor Michael Cunningham feita a propósito da edição em Portugal do seu mais recente romance, A Rainha da Neve. A entrevista foi originalmente publicada nas páginas do suplemento Q,. do DN.

Há uns anos disse-me que, como cidadão, faria o possível para que George W. Bush não fosse eleito (foi no ano 2000, numa entrevista publicada no suplemento DNa). Estávamos em inícios do ano 2000. Bush venceria as eleições em novembro...
O que podia fazer era tentar. Nada era garantido...

O início da narrativa que lemos em A Rainha da Neve leva-nos no tempo às vésperas da reeleição de Bush, em 2004... E o candidato republicano vence novamente... A sua incapacidade de mudar então as coisas terá de algum modo ficado à espera para que um dia pudesse escrever sobre este assunto?
É um ponto interessante... Inconscientemente, sim. Nem estava a pensar nisso. Mas cada novo livro é o resultado das experiências que tivemos desde que terminámos o anterior. E sim, penso que o choque e desânimo que senti, como aconteceu com tantos outros americanos, ao ver George W. Bush a ser reeleito ficou ali e surge agora neste novo livro.

Refere-o neste livro como o pior presidente na história dos EUA.
Uma das coisas boas ao ser romancista é que podemos ter personagens a dizer coisas dessas.

O livro termina nas vésperas de algo que pode mudar em 2008, apesar de os dois irmãos estarem a preparar-se para uma vitória McCain/Palin... E não acreditarem num triunfo de Barack Obama. Sobretudo Tyler.
Sim... Tyler é a personagem mais obcecada com a política e está sempre errado. E pareceu-me certo estruturar o livro desta maneira, abrindo na véspera da reeleição de Bush e terminando na véspera da eleição de Barack Obama. Se bem que as personagens não saibam ainda que ele será eleito. Quis acabar aí porque passaram seis anos de presidência Obama, que foram uma experiência contraditória. Por um lado fez coisas espantosamente boas, mas também houve desilusões. É difícil governar qualquer país, sobretudo um país tão grande como os EUA. Eu naturalmente lembro-me da noite da eleição. E estávamos em êxtase. Parecia impossível que o mesmo país que ainda tão recentemente tinha reeleito George W. Bush estava agora a eleger um homem afro-americano, feroz, inteligente e uma força moral. E aquele pareceu-me o lugar ideal para deixar as pessoas neste livro. No limiar de serem invadidos por um grande otimismo.

É uma noite que ficará na sua memória, essa da eleição em 2008?
Sem dúvida. É uma daquelas noites que muitos vamos lembrar. E nunca esquecer. Nos EUA temos memória de muitas eleições presidenciais anteriores que seguiram em direções chocantes. Sou suficientemente velho para me lembrar de ver Ronald Reagan a ganhar. Jimmy Carter foi uma boa surpresa. Clinton foi uma boa surpresa. Mas no meu tempo de vida nunca tinha havido uma surpresa como Barack Obama. A América é um país com problemas enormes de racismo. E a ideia da eleição de um presidente afro-americano é uma razão suficiente para lembrar essa noite para sempre.

E acredita que em 2016 o país vai eleger uma mulher, se Hillary Clinton decidir avançar?
Sim, acredito. Nunca há garantias... Mas acredito que há americanos em número suficiente preparados para eleger uma mulher. Mas é importante ver que Hillary Clinton não é apenas uma mulher: é também Hillary Clinton! As pessoas não vão votar numa mulher, mas numa pessoa que mostrou já por diversas vezes um sentido de Estado incrível, é inteligente, combina diplomacia e força... Creio que a América está preparada para eleger um candidato altamente qualificado que acontece que é uma mulher. E é mais que a América ultrapassar o seu sexismo. É ver as qualificações do candidato.

Imagina o que teria sido uma América McCain ou Romney?
É quase assustador ter de imaginar. Ainda bem que assim não foi.

Mas pensou que isso pudesse acontecer?
A ideia de ter uma vice-presidente Palin faria até um George W. Bush sentir vergonha. É alguém que achava que África era um país. Mas é assustador que alguém como Sarah Palin possa ter chegado tão perto de poder ser eleita.

Como pode um escritor ver a sua voz a chegar à sociedade? Através das personagens dos seus livros?
Acho que isso é o melhor que pode fazer. Parte do que um romance faz é mostrar aos líderes o que é ser um outro ser humano. E quanto mais empáticos formos talvez consigamos que menos crianças mexicanas sejam deportadas, por exemplo... Mas acho que essa é a principal contribuição de um romancista. Mais do que um ativismo político. Os romancistas servem para nos lembrar que cada um é um ser humano. E ninguém deve ser deportado. Ninguém deve ser aniquilado por um drone no dia do seu casamento. Há estudos que saem todos os dias, é verdade. Mas num que saiu recentemente foi mostrado que as pessoas que leem ficção trabalham de uma forma mais empática que as que não o fazem. Isso é interessante. O trabalho do ficcionista é o de nos levar para as mentes de outros. A ficção é a melhor ferramenta para revelar os outros a nós. O escritor de ficção não tem as limitações de um biógrafo... Há tanto que podemos saber de uma pessoa real... Mas não havia limites sobre o que Tolstói podia saber sobre Anna Karenina. Se o escritor de ficção for bom leva-nos até à alma da personagem como nenhum outro escritor pode fazer.

(continua)